História de Adelaide
Transcribed by Mónica Ganhão
Conto
Diplomatic Transcription
HISTORIA DE ADELAIDE.((The title uses a different font from the rest of the text.))
Adelaide((The first letter of this word is in a font different from both the text and the title.)) correo a mão por cima do loiro cabello de
sua filhinha, e disse:—“Era eu tão grande como Ju-
lia, e já tinha penas! Mas que penas são as da infancia?
Eu sentia, he verdade, a falta das caricias maternas, e
pezava-me o máo humor de meu pai, cujo genio natu-
ralmente aspero se havia azedado com a morte de minha
mãi: mas as minhas tristezas de então erão como o ne-
voeiro de huma manhãa da primavera, que a ligeira ara-
gem do norte logo dissipa. Meus irmãos, que erão mais
crescidos que eu, deixárão a terra natal para irem estu-
dar á universidade de Coimbra; e eu fiquei para soffrer
todo o peso do máo humor de meu pai. Quanto então
invejei a sorte de meus irmãos, e quanto não ambicionei
o ser tambem homem para poder ausentar-me da terra
em que nascêra! Louca que eu era!... Que ha no mun-
do mais doce que o perfume das flores do solo em que
nascemos; o chilrar dos passaros que voltejavão em torno
de nosso berço; a sombra das arvores, em que se fixavão
nossos olhos quando apenas se abrião; e o murmurar da
fonte da nossa aldêa? Agora que vivo no exilio, he que
sei quanto vale o que hei perdido. Se huma andorinha
passa junto a mim, e que anda ajuntando a sua familia
para se ausentar, o coração se me aperta, e sinto hum
pesar vago e profundo de não ter azas, como n’outro tempo
o tive de não ser homem. Tanta foi a vontade que tive
de me apartar do tecto de meus pais, quantos são hoje
os desejos que tenho de o avistar, ainda que só fosse de
longe. Ai de mim! que mais razoaveis são hoje os meus
desejos presentes que os desejos passados? Até velhos sômos
crianças. Nossa vontade, nossos prazeres, nossos desgos-
tos, tudo em fim que sentimos e appetecemos he tão pue-
ril na infancia como na idade madura: por ventura mais
ainda nesta ultima, pois quanto mais vamos na estrada
da vida, mais desejos vãos nos assaltão, menos apreciamos
os bens que gozamos para desejar os a que não podemos
chegar. Eu agora choro a minha patria, quando huma terra
hospitaleira me acolhe; choro a minha familia e o te-
cto paterno, quando huma familia beneficiente me rece-
be em seu seio, e o seu tecto me agazalha. Não he isto
ser ingrato para com Deos e os homens? Não faria eu
melhor em estar como a minha pequena Julia contente e
satisfeita? Contente não!... que a alegria e ventura fo-
gem de hum peito em que a dôr se domiciliou, mas po-
dia viver mais resignada, e seria menos incommoda aos
outros e a mim. O pezar sobre tudo de não viver na mi-
nha terra natal, devia não entrar no número dos meus
pezares. Por acaso o pequeno espaço de terreno que as
vagas cercão, e onde eu primeiro vi a luz do dia, he a
minha patria? Por certo não, que se o fôra teria eu lá
estado satisfeita, haveria lá gozado dias de ventura e de
paz, e nunca a minha vida foi tão tormentosa como lá.
A minha patria, a patria de todos os humanos sêres, he
n’huma esfera mais superior. Todos o sentem, inda que
nem todos o digão ou pensem. Que mais faz arrastar o
fardo de huma miseravel existência aqui, ou n’outra
parte? Tanto vale hum como outro sítio; he sempre em
desterro que vivemos. Com tudo a pezar meu volvo a la-
mentar a terra de meus pais. Lá soffri a mais aguda dôr
que hum coração póde sentir; mas também lá he que vi
Henrique…. Lá vivi huma infancia triste e desgostosa
(eu nasci para padecer); mas lá deixei hum pai, que
mergulhei em mais amargo pezadume do que elle já pa-
decia, e que se queixa por ventura da sorte que lhe dêo
huma só filha, e unica filha que o abandonou. He pois
[370b]
para gemer que eu queria voltar ainda ao sitio do meu
nascimento. Queria regar com minhas lagrimas o solo
que bebeo o sangue do meu Henrique…. queria variar
minhas queixas aos écos que repetem as queixas de meu
pai! Mas debalde anhelo por tornar a pizar a terra na-
talicia. Meu pai não me quer vêr; e então que iria lá
fazer? Vêr o túmulo de Henrique?... encarar em seus
inimigos, e não vêr hum só amigo? Não ter hum cora-
ção que sentisse meus pezares, nem huma mão que en-
xugasse meu pranto? Antes viver expatriada, mas entre
pessoas que simpatisão com minhas penas. Ao menos aqui
vivo na patria de Henrique, no seio da sua familia, e
posso chora-lo sem constrangimento. Todos os corações
aqui o amão, lá só o meu o conhecia e apreciava. Minha
larga digressão te causará tédio, mas he preciso que eu
deixe vaguiar minha imaginação para ganhar forças de
recordar os pezares da minha triste existencia. Em quan-
to meus irmãos se formárão, eu padeci muito. O genio
atrabiliario de meu pai se me tornava insoportável. Cha-
mava-me a pessoa mais desditosa do mundo. Insensata!
julgava-me desgraçada, porque meu pai era demasiado
colerico; que me chamarei eu agora? Havia eu já feito
os dezeseis annos quando os liberaes se apossárão da nossa
ilha. Meu pai e irmãos erão realistas exaltados; eu tam-
bem o era por educação, não por sentimentos, que a ti-
rannia que se usava comigo era muito propria a fazer-me
amar a liberdade. Longe porém desta me ser apresenta-
da com os adornos e gallas com que a costumão ataviar
os seus partidistas, me era pintada com o traje fúnebre e
desalinho indecente de que os seus contrarios a vestem. Eu
a tinha pois em horror, e ainda mais aos seus defenso-
res. Que elles erão homens sem moral nem religião, sem
delicadeza nem honra, era o que á força de o ouvir tinha
impresso na memoria. Nós viviamos n’huma quinta, que
repentinamente ficou rodeada de tropas liberaes. Meu pai
pensava em se retirar para outra quinta mais distante,
quando lhe mandárão hum official aboletado. A nossa fa-
milia era tão suspeita, que seria votar-se a huma des-
graça certa abandonar em taes circunstancias a casa. Foi
pois decidido que ficassemos, e me foi por meu pai or-
denado de não sahir do meu quarto. Tal ordem não me
pareceo dura ao principio. Odiava eu mui francamente os
liberaes para que desejasse encontrar me com elles. Dois
dias estive mesmo sem chegar a huma janella do meu apo-
sento que deitava sobre o jardim, com receio d’ahi vêr
algum dos novos chegados. Todavia a ociosidade, o enjôo
de me vêr só, e a curiosidade me levárão por fim a abrir
a dita janella, e a observar hum official que passeava no
jardim: elle era o nosso hospede, era Henrique. Meu
coração bateo apressadamente, mas ainda hoje penso que
aquellas primeiras pulsações forão de raiva. Pouco a pou-
co porém me acostumei a vêr a nobre figura de Henri-
que. Nos dias seguintes voltei a vê-lo, e cada vez melhor
me pareceo. — “Que pena, que hum tão bello homem
seja hum pedreiro livre, dizia eu suspirando; hum van-
dalo, hum revolucionario!...” — Olhava Henrique ás ve-
zes para mim, e me cortejava respeitosamente. Eu de-
pois de lhe corresponder, córando, mettia-me immedia-
mente((This word should be “immediatamente”, but the syllable “ta” is omitted in the original.)) para dentro. Elle vendo isto por costume, julgou
que eu era vigiada, e que me serião imputadas as suas at-
tenções, ou que por minha livre vontade o queria dissua-
dir de olhar para mim, e não tornou a erguer os olhos
para a minha janella rasgada; isto me dêo huma pena
immensa. Henrique já me era mais querido do que eu
imaginava. Suppuz provir o meu desgosto do meu insola-
mento e prisão, e me queixei a meu irmão mais velho,
que huma occasião me foi vêr. Elle tomou-me o pulso,
achou-me febre, e me pegou pelo braço, dizendo: —
371[a]
“Precisas de algum exercicio, anda comigo ao jardim”
Eu estremeci, replicando: — “Ao jardim!... — Ninguem
encontrarás, me respondeo; os rebeldes tem revista, e
por estas duas horas estamos livres delles: pódes passear
sem susto.” Desci com meu irmão, e senti huma vida
nova. Quanto não he suave o bafo do zefiro na primave-
ra, o aroma das flores, e o gorgear das aves, para hu-
ma alma namorada! Eu cria todavia que o prazer que
experimentava era filho da longa reclusão que havia sof-
frido, e meu irmão suppôz o mesmo. Chamarão-no, e
como elle julgou conveniente á minha saude o exercicio,
deixou-me no jardim, recommendando-me que não me
demorasse muito fóra de casa. Na minha familia nunca
se curou do meu bem senão fisicamente. Estivesse triste
ou alegre, bem ou mal, era o mesmo, com tanto que
eu tivesse saude. Eu era tratada como hum ente irracio-
nal que não possue hum espirito, hum coração sensivel,
e huma alma pensadora. E então eu que tinha hum es-
pirito activo, hum coração terno, e huma alma arden-
te! Quando me vi no jardim corri todos os sitios em que
víra Henrique da minha janella, contemplei as estatuas
que elle havia olhado, colhi as flores que elle tinha chei-
rado. Em hum perfeito delirio corria de hum sitio a ou-
tro, e por fim entrei n’hum pequeno laranjal que ficava
contiguo ao jardim. Nunca tinha tido (nem tornei a ter)
hum momento na vida mais feliz do que aquelle. Sem
saber que amava, sentia o prazer que inspira huma pai-
xão no seu começo, e não sentia o receio que depois a
acompanha. Era feliz sem comprehender a razão porque
o era. Em cima de hum banco que estava á sombra de
huma larangeira vi hum livro, que alli talvez havia es-
quecido a Henrique. Este foi meu primeiro pensamento,
e com tudo o livro podia ser de algum de meus irmãos.
Para vencer minha timidez, disse a mim mesma que o
livro era de alguem que eu não sabia, mas não do nosso
hospede. Peguei pois nelle, e me sentei; o meu corpo
tremia, o que attribui ao cansaço. O livro era a Marilia
de Dirceo. Nunca eu tinha lido aquelles doces versos
(nunca havia lido nada); elles me arrebatárão o pensa-
mento. Eu chorava, beijava o livro…. o tempo voava
sem que eu o percebesse. Ia a erguer os olhos ao ceo na
força do meu enthusiasmo, quando dei com a vista em
Henrique, que a pouca distancia me contemplava com-
movido. Senti hum ardor nas faces, que depressa foi subs-
tituido por hum gêlo de neve, e que outra vez dêo logar
ao fogo ardente. Larguei o livro das mãos, e me descul-
pei balbuciando de ter pegado nelle. Henrique não tinha
ainda dito que o livro lhe pertencia, mas eu naquella
occasião já me não illudia, e estava certa que era delle.
Henrique o apanhou, e mo entregou, dizendo: — “Es-
pero que não terá por ser meu versos menos bellos, pois
que são feitos pelo bom Dirceo. Livre-se só vossa excel-
lencia de lêr a terceira parte, que bem se conhece não
pertence ao amante da formosa Marilia.” — Eu peguei
no livro sem saber o que fazia. O amavel militar me of-
fereceo o braço para me conduzir a casa, vendo que eu
mostrava a intenção de me retirar. Estava eu perplexa,
não sabendo como recusar, e receiando acceitar, ao mes-
mo tempo que o desejava, quando avistei meu pai do
outro lado do laranjal. Cahi sobre o banco, exclamando:
— “Misera de mim!” escondendo o rosto com o livro e
o lenço. — Neste sitio da narração de Adelaide, sua filha,
que brincava com flores sentada a seus pés, lançou hum
agudo grito. A mãi precipitou-se a vêr o que ella tinha.
Huma vespa lhe havia ferrado hum dedo. Adelaide es-
queceo n’hum momento todas as suas passadas angustias
para pensar só no incommodo de sua filha, e procurar
mitigar a dôr que ella sentia. (Continúa.)
378[a]
HISTORIA DE ADELAIDE.((The title uses a different font from the rest of the text.))
(Conclusão.)
No((The first letter of this word is in a font different from both the text and the title.)) dia seguinte emtanto que Julia embalava a sua
boneca, Adelaide continuou: — Meu pai, como hum fu-
racão do inverno, se lançou sobre mim, arrancou-me o
livro com furor, e o arremeçou longe; depois pegou-me
no braço com ímpeto, e me levou comsigo, chamando
no emtanto a Henrique (que interdicto nos olhava) sedu-
ctor, impio, rebelde, sectario da desordem e do crime.
Pensa tu o que sentiria meu coração! Passei todo aquel-
le dia entregue a mil angustias. Perto da noite a minha
criada me disse que o official se havia retirado repenti-
namente de nossa casa, e que o camarada que ficára a
arranjar as malas, me remettia hum livro que havia acha-
do no laranjal, e que tinha o meu nome. A criada em
me dando este recado detinha o livro na mão, bem certa
talvez que elle não era meu. Eu lho arranquei das mãos,
e vi que era a Marilia de Dirceo, com o seguinte escri-
pto a lapis na primeira folha: — “Á belleza e doçura op-
primida hum desgraçado envia.” — “Onde está o cama-
rada? perguntei eu em acto de entregar o livro. — Já se
ausentou tambem, me respondeo a criada; mas o livro
não he delle; se não pertence a vossa senhoria, será de
algum dos senhores. — Não, exclamei retendo o livro as-
sustada, elle he meu; porém queria dar alguma coisa a
esse soldado por o ter achado. — Não he mister, minha
senhora. Estes rebeldes não lhes falta nada.” — Desde
aquelle dia todos os meus instantes forão empregados a
chorar, a lêr a Marilia de Dirceo, e a pensar em Henri-
que. Huma manhãa, que me tinha levantado cedo por
não poder dormir, e que estava á janella que dava para
o jardim vi cahir huma laranja a meus pés. Ergui os
olhos assustada, e avistei Henrique debruçado no muro
do jardim. Córei e fiz-me pálida; o prazer de o vêr era
contrabalançado pelo pejo e pelo receio. Elle me fez hum
aceno de despedida com tristeza, e desappareceo. Aquel-
la rapida apparição me parecia hum engano dos sentidos,
mas a laranja jazia a meus pés para attestar a verdade
do successo. Levantei-a, e vi que só era a casca com hu-
ma carta dentro. Li-a primeiro timidamente, e depois
a tornei a lêr banhada em pranto. Henrique me dizia
nella que ia deixar aquelles sitios, e que não podia re-
solver-se a partir sem me dizer hum adeos, que talvez
seria eterno, e sem me pedir perdão da oppressão que
elle me havia acarretado com sua imprudencia. A minha
saude muito se alterou depois, e meu irmão mais velho,
que suppoz ser causa disto o tratamento duro de meu pai,
alcançou licença de me levar a passar dois mezes com hu-
ma velha parenta, que morava longe da nossa habitação.
Como nos arredores da morada della não havia tropas,
meu irmão deixou-me lá, e voltou para a companhia do
pai, porque só elle podia move lo a obrar com menos
imprudencia quando tinha a tratar com liberaes. Parece
que naquelle tempo o destino tomára a cargo favorecer o
meu amor. Pouco depois de meu irmão partir, chegou
Henrique com hum destacamento á povoação em que eu
estava. Primeiro, por pejo e receio, me esquivei aos ob-
sequios que já então Henrique francamente me fazia co-
mo amante; mas a minha paixão podia já mais que a
minha razão, e sem esquecer as difficuldades quasi in-
venciveis que delle me separavão, lhe deixei por fim sa-
ber, que ama-lo era já huma necessidade para mim. Hen-
rique, arrebatado de prazer, queria correr a meu pai,
pedir-lhe a minha mão. Dissuadi-o de tal, porque sabia
[378b]
a maneira com que esta proposta seria acceita, e o re-
solvi a esperar que meu irmão viesse buscar-me para o
dispôr a implorar por nós a meu pai. Foi em vão que
esperei que meu irmão cederia aos rogos de Henrique. A
todas as instancias que este lhe fez, meu irmão só res-
pondeo que eu era huma criança, que não tinha vontade
propria, e que o pai já me tinha destinado outro mari-
do. Fez-me depois levar á sege quasi sem sentidos, e me
deixou entregue a mim mesma. Elle via-me acabrunhada
de dôr para ousar reprehender-me, e tinha muita altivez
e frieza de caracter para procurar consolar-me. Depois
de meia hora de huma muda desesperação, comecei a
chorar e soluçar. Meu irmão parecia cego, surdo, e mu-
do: só quando estavamos perto da casa he que elle me
aconselhou que enchugasse os olhos, e que não deixasse
conhecer ao pai que no tempo que estivera fóra havia ad-
quirido huma tão grande molestia de cérebro. Apezar da
pouca doçura do discurso de meu irmão, eu conheci que
elle me dava hum conselho de amigo em me advertindo
que hum mais severo juiz me ia observar, e forcejei por
occultar em meu seio toda a força da minha dôr. Pouco
tempo tive porém de constrangimento. Henrique desde
que eu parti foi em meu seguimento. Não vendo outro
meio de me obter, foi lançar-se aos pés de meu pai a
pedir-lhe a minha mão, mas foi repellido com furor. Te-
ve depois Henrique o pezar de vêr que tinha feito au-
gmentar a minha escravidão sem proveito, pois fui de-
pois tratada com o maior rigor, e a elle foi-lhe impossivel
vêr-me, ou fazer-me chegar noticias suas. As cartas que
me escrevia erão todas interceptadas por meu pai, que
as rasgava, e lhas recambiava em mil pedaços. Eu no
emtanto soffria muito. Além de meus occultos pezares,
tinha a luctar com a vontade firme de meu pai, que que-
ria casar-me com hum seu amigo. Este amigo nunca o
havia sido meu, pois me não agradava, mas tinha a
grande qualidade para meu pai de ser realista exaltado,
e extremamente rico. Henrique soube que eu era ator-
mentada para casar com outro, e tomando sómente con-
selho do seu amor, e compaixão por meus soffrimentos,
tirou-me por justiça sem poder consultar-me antes. Se
elle tivesse podido communicar-me as suas intenções, eu
o desviaria de tal, porque não me resolveria nunca a dar
aquelle desgosto a meu pai; mas depois do passo dado,
por honra, delicadeza, e até por medo de meu pai, de-
via seguir a sorte de Henrique, e he o que fiz. Casei
com o homem que adorava; e minha alma, longe de fi-
car satisfeita, ficou entregue a mil desgostos. Como he
triste hum casamento que sabemos despedaça o coração
de hum pai, por duro que elle seja! Ao meu casamento
não assistio hum só parente. Os de Henrique estavão lon-
ge, os meus tomárão o partido de meu pai. Todo o meu
cuidado era disfarçar aos olhos de Henrique as minhas
penas. Que pensaria elle se me visse triste? Elle, que
terno e attencioso, procurava adivinhar-me os pensamen-
tos para me satisfazer?... Eu e Henrique buscámos todos
os meios de adoçar meu pai, mas quantos passos dava-
mos para este fim só servião a irrita-lo mais. Elle por
causa de suas contínuas imprudencias foi preso, e te-
ve a injusta e barbara lembrança de attribuir a meu
esposo a sua prisão. Henrique não só havia sido estranho
a este acontecimento, mas antes tanto trabalhou depois
que lhe fez restituir a liberdade. Neste tempo vierão os li-
beraes para Portugal, e Henrique me deixou só. Que
tempo amargurado passei na sua ausencia! Julia, que
nasceo nesse tempo, foi minha unica consolação. Findou
felizmente a renhida contenda dos liberaes com realistas,
e meu marido foi logo para me conduzir á sua patria.
Achou-me porém tão abatida, que receou que o trans-
379[a]
porte me fosse prejudicial, e demorou-se comigo alguns
mezes. Demora fatal! quantas lagrimas me tem causado,
e ha de causar até á morte?... Melhorei, e como não ti-
nha já esperanças de me reconciliar com a minha fami-
lia, apressei a nossa partida quanto pude. Eu temia (ai
de mim!), temia com justo motivo que algum inimigo
de meu marido lhe tirasse a vida. O partido liberal se
havia dividido em dois (em quantos se dividirá ainda?...),
e se olhava hum ao outro com a mesma raiva com que
o tigre olha o leão. Henrique tinha ficado no partido
menos exaltado, e alguns do partido contrario ameaça-
vão seus dias. Eu não tinha hum momento de socego,
hum instante de alegria. Fazia seguir meu marido de dia
e de noite, e ás vezes eu mesmo o seguia. Estava a par-
tir para Portugal huma embarcação, e nós tinhamos a
bordo quasi todos os nossos trastes. Começava eu a ga-
nhar esperança de me vêr livre de todos os terrores que
dia e noite me atormentavão. Já tinhamos a passar hu-
ma só noite em terra…. Ai! que noite, meu Deos!...
Henrique me fez deitar cedo para que me levantasse de
madrugada. Bem necessitava eu de repouso, que os sus-
tos contínuos me tinhão tornado doente. Quando meu
marido me vio deitada, dêo-me parte que ia ao seu gene-
ral, que o mandára chamar. Quiz-me oppôr a que sahisse,
mas como presistio no seu intento, pedi-lhe encarecida-
mente que levasse o criado. Desgraçada…. naquella ter-
rivel noite não me quiz fazer a vontade em nada. Cha-
mava rindo aos meus justos terrores, terrores panicos.
Não pude descançar hum minuto depois que elle partio.
Escutava com attenção todo o ruido que ouvia, deitava-
me, e sentava-me no leito, humas vezes suava, outras
arrefecia. Julia dormia placidamente no seu berço, e a
criada que estava sentada a seu lado dormia tambem. Eu
tinha vontade de as chamar com meus gritos, de me pôr
a pé, de correr a casa do general, mas ficava em meu
leito, que me parecia hum leito de espinhos. Porque não
mandei eu alguem em procura de Henrique?... porque
não escutei os conselhos do meu coração?... Huma má
vergonha, hum receio de fazer rir meu esposo á minha
custa me deteve. Que importava (oh ceos!) que elle de-
pois me escarnecesse?... Ouvi os passos de Henrique na
rua, e gritei com força que fossem abrir a porta. No
mesmo instante Henrique bateo, e o criado abrio e gri-
tou: — “Matárão o senhor Henrique!” — Saltei do leito,
e voei ao portal. O meu querido Henrique tinha hum
punhal cravado nas costas. Que desesperação! Mandei
todos os criados procurar socorro, e eu fiquei só no por-
tal com Henrique, que deitado de bruços gemia. Quiz
ergue-lo; elle me disse apertando-me mão: — “Ade-
laide…. minha cara Adelaide….” — Fóra de mim lan-
cei as mãos ao punhal para lho tirar; elle me disse: —
“Deixa-me; matas-me mais depressa.” — Então perdi
de todo a razão. Sahi, e o deixei lá ficar só. O meu sen-
tido era ir procurar socorros, mas perdi o tino e o jui-
zo. Inda me lembra de sahir, não me lembra de mais
nada. Quando voltei á razão estava nas visinhanças de
Portugal…. Os amigos de Henrique tinhão-no achado
morto quando o quizerão soccorrer; e fazendo-me depois
procurar, acharão-me desmaiada entre hum montão de
pedras, descalça, despida, toda cheia de pisaduras e de
sangue. Depois quando o julgárão conveniente me fizerão
elles embarcar com a minha Julia…. a minha unica con-
solação e alivio!...” — Adelaide soluçando lançou os bra-
ços a sua filha, e a apertou ao coração. A porta da sala
se abrio, e hum homem adiantado em annos entrou e
observou com ternura a mãi e a filha; depois precipitan-
do-se para ellas, exclamou: — “Minha filha!... minha
querida neta!...” — E as abraçou com transporte.
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Miscellaneous Works by Maria Peregrina de Sousa
- História de Adelaide, 1842
Posted
4 July 2025
Last Updated
13 July 2025