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Discurso VI – O Rouxinol às Sacristãs

by Soror Maria do Céu

Region: Lisboa, Portugal

Edited by Alondra Ramirez, Elliana Shillig, and Ken Virgin

Capítulo

Entrava pelo coro a Sacristã mór((maior; que tudo supera; que é superior em grandeza, intensidade, força, tamanho)) com as suas companheiras, e uma lhe dizia: Vós, senhora, honrarias este ofício. Aqui um rouxinol, que sobre uma roseira, que fazia cortina á janela do coro, deixou de cantar á rosa por responder á Freira: Reparai, disse, o como falais, que vós outras não  honrais o ofício: o oficio é o que os honra a vós; o ofício, senhoras, voz faz umas sacerdotisas Católicas,  umas coadjutoras((da pessoa que ajuda outra)) dos ministros de Cristo, umas imediatas aos Sacerdotes umas ayas da Igreja, e umas místicas do altar; o ofício vos faz tratar as vestimentas sagradas,  os amictos((pano branco que os eclesiásticas põem sobre os ombros)) puros, e os sanguinho santificados: vede agora, se vós honrais o ofício, ou se o oficio vos honra a vós? Certo que de tal comunicação, se os Anjos vos não ajudarão invisíveis, vos tiveram inveja declarados:  o ofício vos faz umas virgens prudentes com vantagens ás do evangelho: elas lá cevavam as alampadas para se justificarem a si, vós cevai-las por alumiar ao Senhor; lá cada qual levava só a sua, vos cevais todas; elas negaram o óleo às companheiras, porque lhe não faltasse para a ocasião , vos sem a nota de escassas proveis o óleo para todas as ocasiões, para todos os dias, para todas as horas , com que o evangelho as fazia elas prudentes, e a vós o ofício prudentíssimas; olhai o que lhe deveis. Lembra-me  a mim que as vestais só por conservarem o fogo, a que chamavam eterno, inútil, porque nem alumiava a Deus, nem ainda aos deuses, antes o tinham subterrado debaixo de uma lajem, eram por esta conservação tão veneradas, que quando por alguma ocasião importante á sua mesma autoridade saião da sua clausura, se na rua as topava a justiça com algum delinquente caminhando ao suplício, ficava o condenado absolto do crime, e livre da morte; assim usava a gentilidade com quem merecia ver o rosto a mulheres, que conservavam aquele fogo: tirai agora a consequência, e vede a veneração, que podeis alegar ceando estas lâmpadas.

Senhoras, em os mais ofícios servis a Deus e as criaturas, neste servis a Deus em Deus; os outros podem vos deixar santas, este deixai vos endeusadas: tocais os ornatos dos altares, as vestimentas dos Sacerdotes mais veneráveis que os santo Ephod((um artefato e um objeto a ser reverenciado na antiga cultura israelita)); com este se servia a um Deus em o Sancta Sanctorum((capela católica romana, holy)) escondido, e com aqueles se serve a um Deus em o Sacramento manifesto: a pureza, senhoras, com? deveis tratar coisas tão altas, deixo-a á vossa cristandade; não falo em pureza de pessoas, que osso seria desconhecer as açucenas, falo em pureza de virtudes: essas mãos, que tocam adornos tão sagrados, devem andar cheias de boas obras; esses pés, que se encaminham a servir a Igreja, não hão de retroceder em inferiores passos; essa mente, invento de tão ditoso adorno, não se  ha de profanar em pensamentos inúteis; toda vós estais deificadas pelo contato, e deveis deificar-vos pelas virtudes; assim vos haveis de achar a vós, vede agora o como haveis de achar o coro. Estes dos lugares haveis de ter tão asseados, que mais vos há de doer um pó neles, que um argueiro em os olhos; eu vos dou licença que tragais o vosso templo tão asseado, como os Japões os seus palácios: de um se conta que porque achou em uma das casas principais uma casca de fruta, matou a criada, que tinha á sua conta a sua limpeza; eu, senhora, não vos digo que castigue vossas companheiras como gentia, nas advirto vos que se houver algum descuido, as reprendais como perfeita. Para o coro, e Igreja se fizeram os aromas, os perfumes, suavidades; ali todo o aceito é limitado, nenhum é nímio, e todas as vezes que queimardes as pastilhas em fogo, fazei por queimar o coração em o amor, que o fumo deste sacrifício ainda há de subir mais alto que o do incenso; tende a vossa Igreja com o asseio, que se deve a um templo de Deus, e ouvi este caso, para que dele espereis o prêmio.

Contasse em o livro das relações da Pérsia, que compõe o Padre Fr. Antonio de Gouvea Religioso de Santo Agostinho((missionário agostinho e enviado a portugueses quem visitou Pérsia três vezes)), que tinham estes um convento em a Cidade de Mombaca, e dele repartição Religiosos, para residências, que tinham por aquela costa; era uma em Pate((uma ilha junto à costa africana; hoje em dia pertencente ao Quênia)); sucedeu estar nesta um religioso chamado Fr. Diogo do Espírito Santo; este com sua doutrina, e exemplo havia feito por aquela costa grandes serviços a Deus; entre os criados e sua casa tinha um moço natural da terra, que pela conversação sabia a língua; era este Mouro por nome Masamede naturalmente bem inclinado, e afeiçoado aos Portugueses, e as suas coisas, e como a tal lhe encomendava o Padre Fr. Diogo muitas vezes o concertar a Igreja, enramara-la, e junca-la em os dias de sesta, o que ele fazia com tanta curiosidade, que dava gosto aos padres, e aos mais cristãos: ausentou se por uns dias por ser preciso acudir a outra parte, continuando o Mouro em o cuidado da Igreja, que lhe encomendou assim a varria, e encarava todos os sábados: sucedeu adoecer antes de chegar o Padre, e apertando a enfermidade mandou chamar um dos portugueses, que em Pate ficaram, e lhe disse: Eu sei que hei de morrer desta doença, porque o Padre do mesmo hábito que o nosso, mas de muito venerável presença veio ter comigo esta noite, e me diste: Porque me não fazia cristão, como me aconselhava Fr. Diogo? Que soubesse morria daquela doença, e se fosse em a seita de Mafoma((Islam)) me havia de perder para sempre; por tanto me aconselhava me fizesse logo cristão, e que ele era muito meu amigo, e me estava muito obrigado pelo serviço, que lhe fazia em sua Igreja; era de Santo Agostinho. Eu lhe prometi tomar logo a vossa lei, rematou o Mouro, pedindo ao Português com muita instância que o batizasse. Ele ainda que muito bom cristão, e devoto, fez pouco caso do que o Mouro lhe dizia, parecendo lhe ser tudo medo da enfermidade, e não desejos de sua conversão, e assim lhe disse não tivesse temor de morrer em aquela ocasião, e que o Padre vinha brevemente, e logo o catequizou, e daria o batismo, e com isto se tornou para a sua pousada. A noite seguinte, como o Mouro afirmou, lhe tornou a aparecer a mesma visão repetindo-lhe o que lhe havia dito, acrescentando tornasse a chamar o português, porque se o não havia batizado, fora por não dar lhe crédito, mas que se insistisse, o faria cristão. Telo assim o Mouro, e chamando ao português, lhe repetiu a segunda visão, e que nela lhe disseram, se o não batizasse logo, daria conta a Deus da sua alma. O cristão temente a Deus, vendo não ser aquele negócio para deferido, o catequizou o melhor que soube, declarando os principais mistérios de nossa fé. O Mouro por se ver livre de mulher, e filhos, que o rodeavam, se passou para a casa do português, não permitindo ser mais visto de parente algum; toda aquela noite conversou na paixão de Cristo, e vendo se chegado ao fim da vida recebeu o batismo da mão do português, sem á o demônio se esquecesse de o molestar com terríveis visões, mostrando-se lhe em forma de negros disformes. que com azagaias o queria matar: defendesse ele com escudo dos nomes de Jesus, e Maria, que não largou da boca até acabar a vida, e ir gozar da visão de Deus, que de tão pequena ocasião, como era o serviço, que este Mouro fazia a sua Igreja, lhe tece-o a coroa da eternidade por meio de sua conversão, merecendo que o mesmo Santo Agostinho o viesse exortar a ela.

Assim premeia Deus a que cuida dos seus altares, a quem se esmera em a sua Igreja, a quem se desvela em seu culto; dos gentios faz católicos, dos católicos fará santos; não receies os gastos do ofício que a mão de Deus é muito liberal para ajudar vos, se a vossa se abrir para seu obséquio; gastei aí tudo o que puderdes com o cabedal, e tudo e que não poderdes com a vontade; nessa oferece em o coro, e Igreja todo o ouro da América, toda a prata do Potosí, todos os topázios da Etiópia, todos os rubis de Ceilão, todos os diamantes da Pérsia, todas as perolas do Sul, e neste sacrifício do desejo mereceres em a vontade o que mereceres em a obra: mais deu a viúva do templo em um real, que os grandes de Jerusalém em muitos talentos, porque ela deu o que tinha com a mão, e o que não tinha com o desejo. A Igreja cheire à glória, fazei-a paraíso nas boninas, e céu nas fragrâncias; principalmente vos encomendo sejais muito liberal com o incenso; aprendei de Alexandre((Alexandre III da Macedônia, também conhecido como Alexandre, o Grande, foi o rei do Império da Macedônia entre 336 a.C. e 323 a.C., no período helenístico da história da Grécia Antiga)) com os templos gentílicos para o Deus verdadeiro: este Príncipe em tudo magno gastava com tal excesso o incenso nos sacrifícios, que seu aio((preceptor encarregado da educação doméstica de famílias nobres)) Leônidas lhe disse se fosse á mão em a demasia, com que o distribuía, pois não era senhor da terra, em que se criava; andou o tempo, e a poucos voos se fez Alexandre Senhor das Arábias, logo mandou a Leônidas um navio carregado do dito aroma, dizendo-lhe gastaste sem dó, pois já estava senhor das terras, que produzia. E porque aqui vem a propósito, vos quero contar o deste fumo de Deus, ou deste Deus dos fumos.

Arábia a Felix é a pátria do incenso; ali nasce em a região de Sabá((região sul da península Arábica)), nome, que seguido os Gregos significa mistério; dizem do terreno, onde se cria, ser entre roxo, e branco; nele se levantam altos montes, em cuja iminência começam a aparecer estas aromáticas árvores, que se continuam até o plano, nascidas, sem que algum as plante, banhadas com claras, e caudalosas fontes; dizem serem três mil, e não mais, as famílias, que por sucessão apropriam a si o direito destas árvores, e por isso são chamados os sagrados, e não se mancham com trato impuro, nem de mortuário, quando podiam estas árvores, e assim se aumenta o lucro com a religião. Costumam colher o incenso uma vez por ano, porque havia pouca ocasião de vendê-lo, mas ao depois o lucro duplicou a vindima; a primeira, e natural é vizinha ao nascimento da canícula com o mais ardente calor, cotando por onde parece estar mais cheia, e estendida a delgadíssima casca, daqui sai, não logo depois de ferida, uma escuma copiosa; essa se coalha, e endurece recebida em um lugar acomodado, ou em esteira de palma, ou em uma eira cercada de panos: daquela maneira é muito puro, desta mais pesado; o que se pega á árvore, se tira, e desfaz com ferro: dividida a selva em partes, nenhum guarda as árvores feridas, nenhum furta ao outro; tudo está seguro; com inocência correspondente recolhesse em o outono o á sai das árvores em o estio((o verão)), que é puro e branco. A segunda vindima é em o verão, e para ela cortam a casca das árvores em inverno; este sai vermelho, e não se pôde comprar com o primeiro; aquele chama o Carfecto, e a este Damlato((nomes)): crê-se ser mais branco o das árvores novas; porém o das antigas mais cheiroso: entre os Europeus se falsifica com goma de resina branca com a semelhança, mas provasse com a brancura, com o tamanho, e com o fogo, que logo arde, e também que não haja chegado aos dentes, quando se faça migalhas. Dei-vos, senhora, esta notícia, para que saibais ou tenhais conhecimento do aroma, que a Deus mandais sacrificar todos os dias.

Muito cuidado, senhora, com os vossos templos, muito ornato, muito asseio, muito fumo, pois até a gentilidade vos dá este particular exemplo. Do legislador Carondas escreve Estobeo haver feito lei, em que condenava por infame ao que levantasse casa de maior pompa, que os templos dos deuses. Oh quantos Católicos se poderão confundir com esta memória, pois á vista de tantas Igrejas pobre, e arruinadas estão levantando palácios à soberba do alheio no empréstimo, do próprio na vaidade, e o pior é que alguns com os frutos das comendas ornaram as suas paredes com teias de damasco, e brocado, e as Igrejas, cujo respeito logram estes frutos, estão cobertas de teias de aranha, usando com elas dos agravos, um na indecência, outro na ingratidão! Oh quantas imagens estão em os altares vestidas de velho, e quantas vaidosas em os estrados revestidas de tecido! Quantos Cristos celebrando o tremendo sacrifício com vestes pobres, quantas damas passeando as ruas com roupas bordadas! Pois que dizes isto, senhora? Não é parecerem os gentios fiéis os católicos gentios? Oh quanto Deus sofre! Ao propósito de que tudo o melhor se deve a Deus, vos trarei um conto, que ainda que pareça apólogo de Esopo, é menos antigo.

Esgravatando um galo em a terra a ver, se achava alguma coisa que comer; que nem os brutos se contentam com o que lhe dão, achou uma pérola, um velório, e uma pedra de sal; como nenhum desses haveres era mantimento para ele, e de boa vontade os trocara por um grão de milho, pois pérolas a galos é o mesmo, que margaritas a porcos, que para cada qual não é melhor, senão o que melhor lhe serve, ficou indeterminado em o que faria destes achados, sendo a pérola o que lhe dava mais cuidado, porque além de o ser, era uma formosa margarita: resolve-se em ir consultar a águia, e acertou; que o buscar o conselho dos sábios é segurar o acerto das ações; chegou ao alto filho, e relatando o sucesso, acrescentou estar duvidoso em se daria a pérola à dama para o seu toucado, se ao homem para os seus interesses, ou se ao mar por sua restituição; e que na repartição do mais estava duvidoso; que viste S. Majestade Aquilina o que era mais justo na distribuição daquele achado, que a ele lhe não era útil para cousa alguma; ouvi-o a águia com grande atenção ao galo, e depois de fixar os olhos em seu deus o Sol, respondeu ilustrada: O velório dareis à dama, porque é de vidro pela matéria, assim como ela o é pela duração, e far-lhe-á memoria do seu ser; o sal dareis ao homem, que anda muito falto de graça, muito cheio de malícia, e de infidelidade; a pérola tomo para nós, que a quero enfiar em um raio de Apollo((um divindade da mitologia greco-romana, sendo identificado como o sol e a luz da verdade)); porque a tudo o mais precioso tem direito os deuses. Dizes como sabia, respondeu o galo; porém, ainda que de fraca memória, me lembra que Cleópatra Rainha do Egypto servindo-lhe de arrecadas duas pérolas tão formosas, que se tiveram por milagre do mar, e a mim parece-me que cairão do toucado a Thetis(( um ninfa do mar )), a primeira sacrificou a seu amor em as aras de um copo de vinho, que deu a Marco Antônio, e a segunda pela ver órfã, a recolheu em o templo, oferecendo-a à deusa Vênus((A deusa Vênus é a deusa do amor e da beleza na mitologia romana)), com que aqui preferi o amor à divindade. Assim foi, tornou-se águia, mas quais foram os frutos desse amor? Para Antônio um punhal, para ela dois áspides, que a isto se aventura quem faz a Deus segundo do homem. Repartiu o galo o seu achado conforme a sentença da águia, que a muitos pode deixar ilustrados, e a todos advertidos.

Nenhuma coisa para a Igreja é nímia, tudo o melhor se lhe deve, não há tesouro, que lhe venham grande. O primeiro templo, e o melhor, que há, onde a divindade se adora sem emboço, é o Céu; e como mostrou Deus a S. João em o seu Apocalipse? Não viu as portas de margaritas, os alicerces de pedras preciosas, as paredes de ouro, o pavimento de cristal, e tudo semelhante? Pois não podia Deus representar-lhe a sua glória, a sua Igreja menos material, e mais divina, ou em uma luz endeusada, ou já em uma participação íntima ou já em uns divinos escuros são sombras translúcidas? Não; porque como o Céu é o verdadeiro templo de Deus, e ele o queria fazer modelo para os outros, mostrou-o composto de tudo o melhor da terra, para que soubessem os homens, que da terra tudo o melhor se devia aos templos, e que para eles eram as pedras, o ouro, as pérolas, e todas as mais preciosidades. Bem o haja David((Davi foi um guerreiro, profeta e rei do povo de Israel)), e bem o houve que entregou a seu filho Salomão para a fábrica do Templo de Deus cem mil talentos de ouro, que se ajustam em sessenta milhões, e mil vezes mil talentos de prata, e tanto de metais inferiores, que não cai em soma. Bem o haja, e quero cuidar que bem o houve Salomão((O rei Salomão foi o rei mais sábio de Israel. Ele era filho do rei Davi e construiu o primeiro templo de Jerusalém)), que mandou levantar este Templo com tão nunca vista magnificência, que as paredes eram de mármore finíssimo, cobertas de tábuas de cedro, e estas de pranchas de ouro, e assim elas como o pavimento, e teto((cobertura de uma construção)) tudo ficava coberto do mesmo metal; o altar do timiama((incenso)) da mesma força, o candeeiro das sete lâmpadas do mais puro, sem outros de menor grandeza; os vasos de ouro, e prata lavrou á milhares, onde as pedras preciosas não dão número. Bem haja, e bem o houve Santa Helena, que na terra santa levantou tantos templos, quantos foram os mistérios, que ali obrou Deus em nossa redenção, sem outros muitos, em que a sua devoção, sem outros muitos, em que a sua devoção se fez conhecer Helena((Santa Helena é a mãe do imperador romano Constantino Magno)), maior por este feito, que por mãe do grande Constantino((Constantino I (272-337) foi o primeiro imperador cristão de Roma.)).  Bem houvesse D. Manoel Rey o felice, que das primícias do Oriente fez prato para a iguaria do Céu. Bem o houvesse o Ilustríssimo D. Aleyxo de Menezes, que escapou das joias da Rainha de Espanha o cofre, que o Príncipe infiel mandou para o Senhor do universo, comprado com oitenta mil cruzados, e só pago em ser depósito de tal sereníssimo Rey D. João o V.((Monarca português, vigésimo quarto rei de Portugal)) tantos príncipes, tantos particulares, que magníficos despenderam, e despendem tantas quantidades em as casas de Deus, que a falta de huns não escurece a piedade dos outros, antes a faz sobressair; e bem o hajais vós, senhora, se em o vosso coro, e Igreja vos esmerareis como perfeita, vos empregareis como religiosa, e vos desvelareis como santa; eu bem sei que não tendes os despojos de David, os tesouros de Salomão, os poderes de Helena, mas podeis suprir com a vontade, até onde estes chegaram com a obra, e assim subireis como o incenso a buscar o prêmio de vossos merecimentos. Calou a ave os avisos, e começou a música com metrô mais suave.

 

Pensamiento, que en amante deseo

subir te veo,

como presumo,

que si acaso te abrazas qual fuego,

subas qual humo,

como muchos aromas

te abrazas uno.

 

Sube al cielo derecho

hecho

incenso puro.

 

De la tierra levanta

tus atributos

por el nido suave,

ave,

Sube al bien summo

tu rematado vuelo,

passe a su orgullo,

y llega fin desaire,

aire,

que es fuego el triunfo,

al cielo y tierra une,

amor no es mucho,

a la esfera traspassa,

passa,

que ya están juntos.

 

Pensamiento, que en amante deseo

subir te veo,

como presumo,

que se acaso te abrazas qual fuego,

subas qual humo.

 

Calou o rouxinol, e substituiu um melro((Homem ardiloso)) com esta música.

 

La princesa de las gentes,

ciudad de Jerusalen

has de Adornar algun dia

con tu persona fiel.

 

Ay de aquel, que su rara beldad no llega a ver,

que su rara beldad no llega a ver.

Pintarte su belleza

al natural nó, porque

adonde todo hombre miente,

que ha de hablar quien menos es?

 

Ay de aquel, que su rara beldad no llega a ver.

Sus puertas son margaritas,

pero ya miento también,

que hasta las piedras son sombra,

donde tanta luz se ve.

 

Ay de aquel, que su rara beldad no llega a ver.

Cimiento de piedras finas

calça su sagrado pie,

más miento, que no ay preciosa,

tan preciosa como el.

 

Ay de aquel, que su rara beldad no llega a ver.

Las calles todas son oro,

más miento, no digo bien,

pues con todos sus quilates

no llega el oro a este ser.

 

Ay de aquel, que su rara beldad no llega a ver.

Las paredes de cristal,

o de luz, no me escuchéis,

que son espejos de Dios,

supe, no diré de que.

 

Ay de aquel, que su rara beldad no llega a ver.

El pavimento sabrás,

pero quién ha de saber,

siendo de estrellas arriba,

el suelo el alto de que es.

 

Ay de aquel, que su rara beldad no llega a ver.

Al fin el templo divino,

ciudad de Jerusalén,

es el palacio de Dios,

todo lo he dicho esta vez.

 

Ay de aquel, que su rara beldad no llega a ver.

 

Diplomatic Transcription

DISCURSO VI.

O ROXINOL A’S SACRISTANS.

Entrava pelo coro a Sacristã mór com

as suas companhyeras, e huma lhe di-

zia: Vós,senhora, honrais este officio. Aqui

hum rouxinol, que sobre huma roseira, que

fazia cortina á janella do coro, deyxou de

cantar á rosa por responder á Freyra: Re-

paray, disse, o como falais, que vós outras

naõ honrais o officio : o officio he o que

vos honra a vós; o officio, senhoras, voz faz

humas sacerdotisas Catholicas , humas

coadjutoras dos ministros de Christo, hu-

mas immediate aos Sacerdotes , humas

ayas da Igreja ,e humas musticas do altar;

o officio vos faz tratar as vestimentas sa-

gradas , os amictos puros, e os sanguinhos

santificados : vede agora, se vós honrais o

officio, ou se o officio vos honra a vós?Cer-

to que de tal communicação, se os Anjos

vos naõ ajudaraõ invisiveis , vos tiveraõ in-

[61]

 

veja declarados : o officio vos faz humas

virgens prudentes com vantagens ás do

Evangelho :ellas lá cevavaõ as alampadas

para se justificarem a si , vós cevailas por

alumiar ao Senhor ; lá cada qual cevava só

a sua, vos cevais todas; ellas negaraõ o

oleo ás companheyras,porque lhe naõ fal-

taste para a occasiaõ , vos sem a nota de es-

cassas proveis o oleo para todas as occa-

sioens, para todos os dias, para todas as ho-

ras , com que o Evangelho as faz a ellas

prudentes, e a vós o officio prudentissimas ;

olhay o que lhe deveis. Lembrame a mim

que as Vestaes sò por conservarem o fogo,

a que chamavaõ eterno, inutil,porque nem

alumiava a Deos, nem ainda aos deoses,

antes o tinhaõ subterrado debayxo de hu-

ma lagem, eraõ por esta conservaçaõ taõ ve-

neradas , que quando por alguma occasiaõ

importante á sua mesma autoridade sa-

hiaõ da sua clausura , se na rua as topava

a justiça com algum delinquente cami-

nhando ao supplicio, ficava o condenado

absolto do crime, e livre da morte; assim

usava a gentilidade com quem merecia

ver o rosto a mulheres, que conservavaõ

aquelle fogo : tiray agora a consequencia,

[62]

 

e vede a veneraçaõ, que podeis allegar ce-

vando estas alampadas.

Senhoras, em os mais officios servis a

Deos em as creaturas, neste servis a Deos

em Deos; os outros podemvos deyxar san-

tas, este deyxavos endeosadas: tocais os

ornatos dos altares, as vestimentas dos Sa-

cerdotes mais veneraveis que o santo

Ephod; com este se servia a hum Deos

em o Sancta Sanctorum escondido, e com

aquellas se serve a hum Deos em o Sacra-

mento manifesto: a pureza, senhoras, com

á deveis tratar cousas taõ altas, deyxo-a á

vossa cristandade; naõ fallo em pureza de

pessoas, que osso seria desconhecer as açu-

cenas, fallo em pureza de virtudes: essas

maõs, que tocaõ adornos taõ sagrados, de-

vem andar cheas de boas obras; esses pés,

que se encaminhaõ a servir a Igreja, naõ

haõ de retroceder em inferiores passos; essa

mente, invento de taõ ditoso adorno, naõ se

ha de profanar em pensamentos inuteis;

toda vós estais deificadas pelo contacto, e

deveis deificarvos pelas virtudes; assim vos

haveis de acear a vós, vede agora o como

haveis de acear o coro. Estes dous lugares

haveis de ter taõ aceados, que mais ha

[63]

 

de doer hum pó nelles, que hum argueyro

em os olhos; eu vos dou licença que tra-

gais o vosso templo taõ aceado, como os Ja-

poens os seus palacios: de hum se conta que

porque achou em huma das casas princi-

paes huma casca de fruta, matou a criada,

que tinha á sua conta a sua limpeza; eu, se-

nhora, naõ vos digo que castigue vossas

companheyras como gentia, nas advirto-

vos que se houver algum descuydo, as re-

prendais como perfeyta. Para o coro, e

Igreja se fizeraõ os aromas, os perfumes,

suavidades; alli todo o aceyo he limitado,

nenhum he nimio, e todas as vezes que

queimardes as pastilhas em o fogo, fazey

por queimar o coraçaõ em o amor, que o fu-

mo deste sacrificio ainda ha de subir mais

alto que o do incenso; tende a vossa Igreja

com o aceyo, que se deve a hum templo de

Deos, e ouvi este caso, para que delle espe-

reis o premio.

Contase em o livro das relaçoens da Per-

sia, que compoz o Padre Fr. Antonio de

Gouvea Religioso de Santo Agostinho, que

tinhaõ estes hum convento em a Cidade de

Mombaca, e delle repartiaõ Religiosos,

para residencias, que tinhaõ por aquella

[64]

 

costa, era huma em Pate; succdeo estar

nesta hum Religioso chamado. Fr. Diogo

do Espirito Santo; este com sua doutrina, e

exemplo havia feyto por aquella costa

grandes serviços a Deos; entre os criados

de sua casa tinha um moço natural da ter-

ra, que pela conversaçaõ sabia a lingua ;

Era este Mouro por nome Masamede natu-

ralemnte bem inclinado, e affeiçoado aos

Portugueses, e ás suas cousas, e como a

tal lhe encommendava o Padre Fr. Diogo

muytas vezes o concertar a Igreja, enra-

malla, e juncalla em os dias de sesta,o que

dava gosto aos Padres, e aos mais Chris-

taõs: austentouse por huns dias por ser

preciso acodir a outra parte, continuando

o Mouro em o cuydado da Igreja, que lhe

encommendara, assim a varria, e enrama-

va todos os sabbados: succedeo adoecer

antes de chegar o Padre, e apertando a en-

fermidade mandou chamar hum dos Por-

tuguezes, que em Pate ficaraõ, e lhe disse:

Eu sey que hei de morrer desta doença,

Porque hum Padre do mesmo habito que

o nosso, mas de muy veneravel preferença

veyo ter comigo esta noyte, e me diste: Por-

[65]

 

que me naõ fazia Christaõ, como me acon-

selhava Fr. Diogo? Que soubesse morria

daquella doença, e se fosse em a feita de

Masoma, me havia de perder para sempre;

por tanto me aconselhava me fizesse logo

Christaõ, e que elle era muyto meu ami-

go, e me estava muyto obrigado pelo ser-

viço, que lhe fazia em a sua Igreja; era de

Santo Agostinho. Eu lhe prometti de to-

mar logo a vossa ley, rematou o Mouro,

pedindo ao Portuguez com muyta infan-

cia que o bautizasse. Elle ainda que muy-

to bom Christaõ, e devoto, fez pouco

dolhe ser tudo medo da enfermidade, e

naõ desejos de sua conversaõ, e assim lhe

disse naõ tivesse  temor  de  morrer em

aquella occasiaõ, e que o Padre vinha bre-

vemente, e logo o catequizaria, e daria o

bautismo, e com isto se tornou para a sua

pouzada. A noite seguinte, como o Mouro

afirmou, lhe tornou a aparecer a mesma

visaõ repetidolhe o que lhe havia dito,

accrescentado tornasse a chamar o Portu-

guez, porque se o naõ havia bautizado, fo-

ra por naõ darlhe credito, mas que se

instasse, o faria Christaõ. Telo assim o Mou-

[66]

 

ro, e chamando ao Portuguez, lhe repetio

a segunda visaõ, e que nella lhe disseraõ,

se o naõ bautizasse logo, daria conta a Deos

da sua alma. O Christaõ temente a Deos,

vendo naõ ser aquelle negocio para defe-

rido, o catequizou o melhor que soube,

declarandolhe os principaies mysterios de

nossa fé. O Mouro por se ver livre de mu-

lher, e filhos, que o rodeavaõ, se passou

para a casa do Portuguez, naõ permittin-

do ser mais visto de parente algum; toda

aquella noite conversou na payxaõ de

Christo, e vendose chegado ao fim da vi-

da recebeu o bautismo da maõ do Portu-

guez, sem á o demonio se esquecesse de o

molestar com terriveis visoens, mostran-

doselhe em forma de negros disformes,

que com azagayas o queriaõ matar: defen-

deose elle com o escudo dos nomes de

Jesus, e Maria, que naõ largou da boca

até acabar a vida, e ir gosar da visaõ de

Deos, que de taõ pequena occasiao, como

era o serviço. que este Mouro fazia á sua

Igreja, lhe teceo a cotoa da eternidade por

meyo de sua conversaõ, merecendo que o

mesmo Santo Agostinho o viessa exhortar

a ella.

[67]

 

Assim premea Deos a quem cuyda dos

seus altares, a quem se esmera em a sua

Igreja, a quem se disvela em seu culto;

dos gentios faz Catholicos, dos Catholi-

cos fará santos; naõ receeis os gastos do

officio, que a mão de Deos he muy liberal

para ajudarvos, se a vossa se abrir para seu

obsequio; gastay ahi tudo o que poderdes

com o cabedal, e tudo e que naõ poderdes

com a vontade; nessa offerecey em o coro,

e Igreja todo o ouro da America, toda a

prata do Potosi, todos os topasios da Etio-

pia, todos os rubins de Ceilaõ, todos os

diamantes da Persia, todas as perolas do

Sul, e neste sacrificio do desejo merece-

reis em a vontade o que merecerieis em

a obra: mais deo a viuva do templo em

hum real, que os grandes de Jerusalem em

muitos talentos, porque ella deo o que

tinha com a maõ, e o que naõ tinha com

o desejo. A Igreja he a gloria da terra;

fazei que a vossa Igreja cheire á gloria,

fazei-a paraiso nas boninas, e ceo nas fra-

grancias; principalmente vos encõmendo

sejais mui liberal com o incenso; apren-

deide Alexandre com os templos genti-

licos para o Deos verdadeyro: este

[68]

 

Principe em tudo magno gastava com tal

excesso o incenco nos sacrificios, que seu

ayo Leonidas lhe disse se fosse á maõ em a

demazia, com que o distribuia, pois naõ

era senhor da terra, em que se creava; an-

dou o tempo, e a poucos voos se fez Ale-

xandre senhor das Arabias, logo mandou

a Leonidas hum navio carregado do dito

aroma, dizendolhe gastaste sem dó, pois

já estava senhor das terras, que o produ-

ziaõ. E porque aqui vem a proposito, vos

quero contar o deste fumo de Deos, ou

deste Deos dos fumos.

Arabia a Felix he a patria do incenso;

alli nasce em a regiaõ de Sabá, nome, que

segũdo os Gregos significa mysterio; dizem

do terreno, aonde se cria, ser entre roxo,

e branco; nelle se levantaõ  altos montes,

em cuja eminencia começaõ a apparecer

estas aromaticas arvores, que se continuaõ

até o plano, nascidas, sem que algum as

plante, banhadas com claras, e caudalo-

sas fontes; dizem serem tres mil, e naõ

mais, as familias, que por successaõ appro-

priaõ a si o direyto destas arvores, e por

isso saõ chamados os sagrados, e naõ se

manchaõ com trato impuro, nem de mor-

[69]

 

tuorio, quando podaõ estas arvores, e assim

se augmenta o lucro com a religiaõ. Cos-

tumaõ colher o incenso huma vez por

anno, porque havia pouca occasiõ de

vendello, mas ao depois o lucro dupli-

cou a vindima; a primeyra, e natural he

vizinha ao nascimento da canicula com

o mais ardente calor, cortando por onde

parece estar mais cheya, e estendida a del-

gadissima casca, daqui sahe, naõ logo de-

pois de ferida, huma escuma copiosa; esta

se coalha, e endurece recebida em hum

lugar accommodado, ou em esteira de

palma, ou em huma eira cercada de pan-

nos: daquella maneira he muy puro, des-

ta mais pezado; o que se pega á arvore, se

tira, e desfaz com ferro: dividida a selva

em partes, nenhum guarda as arvores fe-

ridas, nenhum furta ao outro; tudo está

seguro; com innocencia correspondente

recolhesse em o Outono o á sahe das arvo-

res em o Estio, que he puro, e branco. A

egunda vindima he em o Veraõ, e para

ella cortaõ a casca das arvores em Inver-

no; este sahe vermelho, e naõ se póde com-

prar com o primeyro; áquelle chamaõ

Carfecto, e a este Damiato: cre-se ser mais

[70]

 

branco o das arvores novas; porém o das

antigas mais cheiroso: entre os Europeus

se falsifica com goma de rezina branca

com a semelhança, mas provase com

a brancura, com o tamanho, e com o fogo,

que logo arde, e tambem que naõ haja

chegado aos dentes, quando se faça miga-

lhas. Deivos, senhora, esta noticia, para que

saibais, ou tenhais conhecimento do

aroma, que a Deos mandais sacrificar to-

dos os dias.

Muyto cuydado, senhora, com os vos-

sos templos, muyto ornato, muyto aceyo,

muyto fumo, pois até a gentilidade vos

dá este particular exemplo. Do legisla-

dor Carondas escreve Estobeo haver fey-

to ley, em que condenava por infame ao

que levantasse casa de mayor pompa, que

os templos dos deoses. Oh quantos Ca-

tholicos se poderáõ confundir com esta

memoria, pois á vista de tantas Igrejas

pobre, e arruinadas estaõ levantando

palacios á soberba do alheyo no empres-

timo, do proprio na vaidade, e o peyor he

que alguns com os frutos das commendas

ornaraõ as suas paredes com teyas de da-

masco, e brocado, e as Igrejas, cujo res-

[71]

 

peyto lograõ estes frutos, estaõ cobertas

de teyas de aranha, usando com ellas dous

aggravos, hum na indecencia, outro na

ingratidaõ! Oh quantas imagens estaõ

em os altares vestidas de velho, e quan-

tas vaidosas em os estrados revestidas de

tissu! Quantos Christos celebrando o tre-

mendo sacrificio com vestes pobres, quan-

tas damas passeando as ruas com roupas

bordadas! Pois que dizes a isto, senhora?

Naõ he parecerem os gentios fieis,e os Ca-

tholicos gentios? Oh quanto Deos so-

fre! Ao proposito de que tudo o melhor

se deve a Deos, vos trarey hum conto, que

ainda que pareça apologo de Esopo, he

menos antigo.

Esgravatando hum gallo em a terra a

ver, se achava alguma cousa que comer;

que nem os brutos se contentaõ com o que

lhe daõ, achou huma perola, hum velo-

rio, e huma pedra de sal; como nenhum

destes haveres era mantimento para elle,

e de boa vontade os trocara por hum graõ

de milho, pois perolas a gallos he o mes-

mo, que magaritas a porcos, que para ca-

da qual naõ he melhor o melhor, senaõ o

que melhor lhe serve, ficou indetermina-

[72]

 

do em o que faria destes achados, sendo

a perola o que lhe dava mais cuydado,

poque além de o ser, era huma formosa

margarita: resolveose em ir consultar a

aguia, e acertou; que o buscar o conselho

dos sabios he segurar o acerto das ac-

çoens; chegou ao alto ninho, e relatando

o successo, accrescentou estar duvidoso em

se daria a perola á dama para o seu touca-

do, se ao homem para os seus interesses,

ou se ao mar por sua restituiçaõ; e que na

reparticaõ do mais estava duvidoso; que

visse S. Magestade Aquilina o que era mais

justo na distribuiçaõ daquele achado,

que a elle lhe naõ era util para cousa al-

guma; ouvio a aguia com grande attençaõ

ao gallo, e depois de fixar os olhos em

seu deos o Sol, respondeu illustrada: O

velorio dareis á dama, porque he de vidro

pela materia, assim como ella o he pela

duracaõ, e farlheha memoria do seu ser;

o sal dareis ao homem, que anda muyto

falto de graça, muyto cheyo de malicia,

e de infidelidade; a perola tomo para nós,

que a quero enfiar em hum rayo de Apollo;

porque a tudo o mais precioso tem direito

os deuses. Dizes como sabia, respondeo

[73]

 

o gallo; porém, ainda que de fraca me-

moria, me lembra que Cleopatra Rainha

do Egypto servindolhe de arrecadas duas

perolas taõ formosas, que se tiveraõ por

milagre do mar, e a mim pareceme que

cahiraõ do toucado a Thetis, a primeyra

sacrificou a seu amor em as aras de hum

copo de vinho, que deo a Marco Antonio,

e a segunda pela ver orfã, a recolheo em o

templo, offerecendo-a à deosa Venus, com

que aqui preferio o amor à divinidade.

Assim foy, tornou a aguia, mas quaes fo-

raõ os frutos desse amor? Para Antonio

hum punhal, para ella dous aspides, que

a isto se aventura quem faz a Deos segun-

do do homem. Repartio o gallo o seu acha-

do conforme a sentença da aguia, que a

muytos pode deyxar illustrados, e a todos

advertidos.

Nenhuma cousa para a Igreja he nimia,

tudo o melhor se lhe deve, naõ ha thesou-

ro, que lhe venha grande. O primeyro tem-

plo, e o melhor, que ha, aonde a divin-

dade se adora sem embuço, he o Ceo; e

como o mostrou Deos a S. Joaõ em o seu

Apocalypse? Naõ vio as portas de marga-

ritas, os alicerces de pedras preciosas, as

[74]

 

paredes de ouro, o pavimento de crystal,

e todo semelhante? Pois naõ podia Deos

representarlhe a sua gloria, a sua Igreja

menos material, e mais divina, ou em hũa

luz endeosada, ou já em huma particpa-

çaõ intima, ou já em huns divinos escu-

ros huas sombras transluzidas? Naõ; por-

que como o Ceo he o verdadeiro templo

de Deos, e elle o queria fazer modelo

para os outros, mostrou-o composto de tu-

do o melhor da terra, para que soubessem

os homens, que da terra tudo o melhor se

devia aos templos, e que para elles eraõ

as pedras, o ouro, as perolas, e todas as

mais preciosidades. Bem o haja David, e

bem o houve que entregou a seu filho Sa-

lamaõ para a fabrica do Templo de Deos

cem mil talentos de ouro, que se ajustaõ

em secenta milhoens, e mil vezes mil ta-

lentos de prata, e tanto de metaes inferio-

res, que naõ cahe em sõma. Bem o haja, e

quero cuidar que bem o houve Salamaõ,

que mãdou levantar este Templo com taõ

nunca vista magnifiencia, que as paredes

eraõ de mamore finissimo, cobertas de

taboas de cedro, e estas de pranchas de

ouro, e assim ellas como o pavimento, e

[75]

 

tecto tudo ficava coberto do mesmo me-

tal; o altar do thimiama da mesma forte,

o candieiro das sete alampadas do mais

puro, sem outros de menos grandeza; os

vasos de ouro, e prata lavrou á milhares,

aonde as pedras preciosas naõ daõ nu-

mero. Bem haja, e bem o houve Santa He-

lena, que na terra santa levantou tantos

templos, quantos foraõ os mysterios, que

alli obrou Deos em nossa redempçaõ, sem

outros muytos, em que a sua devoçaõ se

fez conhecer Helena, mayor por este fey-

to, que por mãy do grande Constantino.

Bem houvesse D. Manoel Rey o felice,

que das primicias do Oriente fez prato

para a iguaria do Ceo. Bem o houvesse o

Illustrissimo D. Aleyxo de Menezes, que

escapou dasjoyas da Rainha de Hespanha o

cofre, que o Principe infiel mandou para

o Senhor do universo, comprado com

oitenta mil cruzados, e só pago em ser

deposito de tal thesouro. Bem o hajaõ

com o nosso serenissimo Rey D. Joaõ o

V. tantos Principes, tantos particulares,

que magnificos despenderaõ, e despendem

tantas quantidades em as casas de Deos,

que a falta de huns naõ escurece a piedade

[76]

 

dos outros, antes a faz sobresahir; e bem o

hajais vos, senhora, se em o vosso coro,

e Igreja vos esmerardes como perfeyta,

vos empregardes como Religiosa, e vos

desvelardes como santa; eu bem sey que

naõ tendes os despojos de David, os the-

souros de Salamaõ, os poderes de Hele-

na, mas podeis supprir com a vontade, até

onde estes chegaraõ com a obra, e assim

subireis como o incenso a buscar o premio

de vossos merecimentos. Calou a ave os

avisos, e começou a musica com metro

mais suave.

 

Pensamiento, que en amante deseo

Subir te veo,

Como presumo,

Que si acaso te abrazas qual fuego,

Subas qual humo,

Como muchos aromas

Te abrazas uno.

Sube al cielo derecho

Hecho

Incenso puro.

De la tierra levanta

Tus atributos

Por el nido suave,

Ave,

[77]

 

Sube al bien summo

Tu rematado buelo,

Passe a su orgullo,

Y llega sin desaire,

Aire,

Que es fuego el triunfo,

Al cielo y tierra une,

Amor no es mucho,

A la esfera traspassa,

Passa

Que ya estan juntos.

Pensamiento, que en amante deseo

Subir te veo,

Como presumo,

Que se acaso te abrazas qual fuego,

Subas qual humo.

Calou o rouxinol, e sustituio hum melro

com esta musica.

La Princeza de las gentes,

Ciudad de Jerusalen

Has de adornar algun dia

Con tu persona fiel.

Ay de aquel, que su rara beldad no llega

a ver,

Que su rara beldad no llega a ver.

Pintarete su belleza

Al natural nó, porque

[78]

 

Adonde todo hombre miente,

Que ha de hablar quien menos es?

Ay de aquel, que su rara beldad no llega

a ver.

Sus puertas son margaritas,

Pero ya miento tambien,

Que hasta las piedras son sombra,

Donde tanta luz se ve.

Ay de aquel, que su rara beldad no llega

a ver.

Simiento de piedras finas

Calça su sagrado pie,

Mas miento, que no ay preciosa,

Tan preciosa como el.

Ay de aquel, que su rara beldad no llega

a ver.

Las calles todas son oro,

Mas miento, nó digo bien,

Pues con todos sus quilates

No llega el oro a este ser.

Ay de aquel, que su rara beldad no llega

a ver.

Las paredes de cristal,

O de luz, no me escucheis,

Que son espejos de Dios,

Supe, no diré de que.

Ay de aquel, que su rara beldad no llega

a ver.

[79]

 

El pavimento sabrás,

Pero quien ha de saber,

Siendo de estrellas arriba,

El suelo el alto de que es.

Ay de aquel, que su rara beldad no llega

a ver.

Al fin el templo divino,

Ciudad de Jerusalen,

Es el palacio de Dios,

Todo lo he dicho esta vez

Ay de aquel, que su rara beldad no llega

a ver.

[80]

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Posted

4 January 2022

Last Updated

14 June 2022