Discurso V – O Pardal à Madre das Confissões
Edited by Alondra Ramirez Herrera
Capítulo
Fez o pardal1Pássaro doméstico, ave que habita as casas. seu ninho em uma arvore vizinha á janela de certo confessionário a tempo, que nele entrava a religiosa, que administrava aquele oficio, e dizia enfadada: Perdoe Deus a quem me obrigou a sofrer impertinências de frades.2Indivíduo que pertence a uma ordem religiosa; monge. Aqui lhe respondeu o pardal: Senhora não cuideis em que são Frades, cuidai só em que são sacerdotes, e assim achando-vos indigna de serviços vos achareis capaz de tolera-os, olhai-os com atenção em o altar, e logo vos humilhareis em o concessionário; não direis: Eu sofro a um Religioso; mas direis: Eu sirvo a um semideus; estima muito o vosso oficio, mas adverti, que haveis mister3Forçoso, necessário ou urgente. muita discrição para não errar, porque estão por vossa conta; ainda que tem vezes de divinos, são humanos:
Tratei-os com recato com a homens, com veneração como a sacerdotes, com respeito com religiosos, com benevolência como a irmãos, e com caridade como a pobres. Se forem impertinentes, sofreu-os; se forem demasiados, adverti-os, e se forem santos, imitai-os: em o seu trato dai-lhe mais para a abundância, que para o regalo4Expressão de prazer; satisfação, alegria; algum dia podeis dispensar para este, lembrando vos que são humanos, em o mais cuidai sempre em que são religiosos. Quando os nomeardes, antes lhes dareis o nome de pai, que de filho, porque este inculca carinho, e o outro respeito, e se vos virdes afável por condição, fazei-vos séria por entendimento; tratai-vos como homens, ainda que sejam cristãos, sede muito recatada em a conversação, e muito larga em a caridade, que uma coisa não implica a outra, e ouvi ao nosso propósito um conto, que esta manhã me contarão as aves, quando começarão a falar.
A deusa Thetis5na mitologia grega, deus do mar é uma ninfa do mar, uma das cinquenta nereidas filhas do antigo deus marinho. saiu um dia com licença de Neptuno6deus romano do mar, inspirado no deus grego Poseidon. a passear as praias, ainda que deusa se achou cansada, porque era deusa de carne, e sangue, ou para melhor dizer, de sangue, e peixe, achou-se ali um velho Oriental, e reparando o desalento da deusa, que conhecia por mulher formosa, era o mesmo que conhece-la por deusa; chegou muito cortezão a oferecer-lhe um bordão, que levava do melhor calambuco de Ceilão 7Antiga designação da ilha do oceano Índico que constitui o atual Sri Lanka., se é que lhe não veio do parisso8planta pelo Ganges9um rio na Índia como a vara de Santa Ludovina10foi uma devota santa católica holandesa., que do dito vergel lhe trouxe o seu anjo para levantar a cortina da cama em sua dilatada, e penosa enfermidade, cujo cheiro consolando a todos cesto ao nosso conto, aceitou Thetis o bordão muito risonha, muito agradecida: era deus, não podia ser ingrata, e com a odorifera11significa cheirosa, aromática, balsâmica, olorosa, perfumada. vara continuo seus passeios, até que farta de parecer humana, tornou para os palácios cristalinos, aonde Neptuno a esperava saudoso: passados alguns dias, fez o velho caritativo jornada por mar, soube-o Thetis, lembrada do seu beneficio chamou as ninfas, e mandou-lhes que regalassem aquele navegante com os peixes, que o divertissem com musicas, e que o assagastem com a conversação: O mais sim, responderam as ninfas12na mitologia grega, são divindades femininas secundárias que habitam os campos, as florestas e os mares etc., isso ultimo não. Porque? disse Thetis. Porque somos ninfas, tonarão elas. Este apólogo, senhora, é para vosso exemplo, vos sois uma ninfa racional, uma ninfa católica, que isto são as religiosas; com todas a sua conversão a de ser muito seria, com todo o sexo, com toda a idade, em toda ocasião. As ninfas conferirão em o regalo como agradecimento, consentiram a música como obsequio, e fugirão da afabilidade como delito, porque ficassem ninfas.
Quando alguma religiosa ou por desafogo, ou por escrúpulo os pedir em alguma ocasião outro Confessor, não lhe negueis, que os segredos da alma não se podem atar às prisões do sempre; já se entende que sendo o nomeado dos permitidos pelos prelados.13refere-se a sacerdotes, bispos O confessor de casa tende sempre pronto para ouvir a todas, mas não façais cerimônia em lhe faltar, alguma hora pode haver, em que lhe importe á consciência a variedade; neste particular nem sejais muito larga em conceder, nem muito dificultosa em permitir; meditando com discrição, que a uma vara muito segura; deixai escolher hum dia, em que a consciência quer desafogar, e ouvi este caso, que vem aqui. Em certa cidade de Holanda have entre muitos um herege,14alguém que professa uma heresia ou prática doutrinas contrárias aos dogmas concebidos pela igreja. ao qual pelas suas muitas prendas desejavam os católicos converter; resistia-se ele, sendo de sua conversão a maior dificuldade isto de confissão; finalmente te apertaram as instâncias, tocou-o Deus, veio a reduzir-se a tempo, que em aquela cidade pregava um religioso dos de maior suposição assim em letras, como em espírito. Abjurador os erros, disse ao moço, que havia sido herege, um dos amigos católicos, que fiasse a sua consciência do dito Padre. Aqui respondeu ele; e vós nomeais-me confessor para os segredos de alma? Eu sou o que hei de escolher o homem. Isto disse o Holandês convertido, e eu vos digo a vós que não aperteis com os segredos da alma; isto de confissão é matéria de muitas consequências; antes se favorece, que se apure. Perdoai, senhora, estes avisos a um pássaro, que ainda que vilão pelo pardo, também é religioso pela cor. Voou o pardal, quando uma filomena15pássaro lhe substitui-o em a arvore o lugar com esta letra.
El empelo, que tienes,
Es tan supremo,
Que te fían las llaves
de un Sacramento.
Endiosada te miro,
cuando te veo,
Cuando qual Ángel asistes
al pan de cielo.
Procura dar mate
al gran lucero,
Que en purezas de mas
el Sol es menos.
Esto manda cortarse.
En dulces quiebros
el pardo de las aves,
Que no el Orfeo.16um músico, poeta e profeta lendário na religião grega antiga.
Diplomatic Transcription
DISCURSO V
O PARDAL A' MADRE DAS CONFISSÕES
Fez o pardal seu ninho em huma arvo-
re vizinha á janella de certo confessio-
nario a tempo, que nelle entrava a Religio-
sa, que administrava aquele officio, e dizia
enfadada: Perdoe Deos a quem me obri-
gou a sofrer impertinencias de frades.
aqui lhe respondeu o pardal: Senhora não
cuydeis em que saõ Frades, cuydai fó em
que são Sacerdotes, e assim achandovos in-
digna de servillos, vos achareis capaz de
tolerallos, olhai-os com attenção em o al-
tar, e logo vos humilhareis em o consessio-
nario; não direis: Eu sofro a hum religioso;
mas direis: Eu sirvo a hum semi-Deos; esti-
mai muyto o vosso officio, mas adverti, que
haveis mister muyta discriçãó para não er-
rallo, porque estaõ por vossa conta; ainda
que tem vezes de divinos, são humanos:
[ 55]
tratai-os com recato com a homens, com
veneração como a Sacerdotes, com respey-
to com Religiosos, com benevolencia
como a irmãos, e com caridade como a po-
bres. Se forem impertinentes, soffrei- os; se
forem demasiados, adverti-os, e se forem
santos, imitai-os: em o seu trato dailhe
mais para a abundancia, que para o regalo;
algum dia podeis dispensar para este, lem-
brandovos que são Religiosos. Qua-
do os nomeardes, antes lhes dareis o no-
me de pay, que de filho, porque este incul-
ca carinho, e o outro repeyto, e se vos vir-
des afável por condição, fazeivos séria
por entendimento; tratai-vos como homens,
ainda que seraõ Christos, sede nnyto reca-
tada em a conversaçaõ, e muyto larga em
a caridade, que huma cousa não implica a
outra, e ouvi ao nosso proposito hum con-
to, que esta manhã me contaraõ as aves,
quando começaraõ a fallar.
A deosa Thetis fahio hum dia com li-
cença de Neptuno a passear as praias, ain-
da que deosa se achou cansada, porque era
deosa de carne, e sangue, ou para melhor
dizer, de sangue, e peyxe, achouse allu hum
[56]
velho Oriental, e reparando o desalento da
deosa, que conhecia por mulher formosa,
era o mesmo que conhecella por deosa;
chegou muyto cortezaõ a offerecerlhe
hum bordaõ, que levava do melhor calam-
huco de Ceilaõ, fe he que lhe naõ veyo do
parisso pelo Ganges, como a vara de Santa
Ludovina, que do dito vergel lhe trouxe o
seu Anjo para levantar a cortina de cama
em sua dilatada, e penosa enfermidade,
cujo cheyro consolando a todos cestou ao
nosso conto, aceytou Thetis o bordaõ muy-
to rifonha, muyto agradecida: era deosa,
naõ podia ser ingrata, e com a odoriserta
de parecer humana, tornou para os pala-
cios crystallinos, aonde Neptuno a espera-
va saudoso: passados algús dias, fez o velho
caritativo jornada por mar, soube- o The-
tis, lembrada do seu beneficio chamou as
ninfas , e mandoulhes que regalassem
aquele navegante com os peixes, que -o
divertissem com musicas, e que o assagastem
com a conversaçaõ: O mais sim, respone-
raõ as Ninfas, isso ultimo naõ. Porque?
disse Thetis. porque somo Ninfas tona-
[57]
raõ ellas. Este apólogo, senhora, he para
vosso exemplo, vos sois huma Ninfa racio-
nal, huma Ninfa catholica, que isto saõ as
Religiosas; com todas a sua conversação
ha de ser muy seria, com todo o sexo, com
toda a idade, em toda occusiaõ. As Nin-
fas confentiraõ em o regalo como agra-
decimento, confentiraõ em a musica como
obsequio, e fugiraõ da affabilidade como
delito, porque ficassem Ninfas.
Quando alguma Religiosa ou por def-
afogo, ou por escrupulo os pedir em algu-
ma occasiaõ outro Consessor, naõ lho ne-
gueis, que os segredos da alma naõ se po-
dem atar ás prisoens do sempre; já se en-
tende que sendo o noemado dos permetti-
dos pelos Prelados. O confessor de casa
tende sempre prompto para ouvir a todas,
mas naõ façais ceremonia em lhe faltar,
alguma hora pode haver, em que lhe im-
porte á consciencia a varedade; neste parti-
cular nem sejais muyto larga em conce-
der, nem muyto difficultosa em permitir;
meditudo com discriçaõ, que ha huma vara
muyto segura; deixay escolher hum dia,
em que a consciencia quer desafogar, e ou-
vi este caso, que vem aqui Em certa Cida-
[58]
O Pardal á Madre das Confissoens
de de Hollanda have entre muytos hum
hereje. Ao qual pelas suas muitas prendas
desejavaõ os Catholicos converter; resist-
tia-se elle, sendo de sua conversaõ a ma-
yor difficuldade isto de confissaõ; finalmente-
te apertaraõ as instancias, tocou-o Deus,
veyo a reduzirise a tempo, que em aquella
Cidade prégava hum Religioso dos de
mayor supposiçaõ assim em letras, como em
espirito. Abjurador os erros, disse ao moço,
que havia sido hereje, hum dos amigos Ca-
Tholicos, que fiasse a sua consciencia do di-
to Padre. Aqui respondeu elle; e vós no-
meaisme Confessor para os segredos de al-
ma? Eu sou o que hei de escolher o homem.
Isto disse o Hollandez convertido, e eu vos
digo a vós que naõ aperteis com os segre-
dos da alma; isto de confissaõ he materia
de muitas consequencias; antes se favore-
Ce, que se apure. Perdoay, senhora, estes
avisos a hum passaro, que ainda que villaõ
Pelo pardo, tambem he Reliogioso pela cor.
Voou o pardal, quando huma filomena lhe
sustituio em a arvore o lugar com esta le-
tra.
El empleo, que tienes,
Es tan supremo,
[59]
Que te fian las llaves
De un Sacramento.
Endiosada te miro,
Quando te veyo,
Quando qual Angel assistes
Al pan de cielo.
Procura dar mate
Al gran lucero,
Que en purezas de mas
El Sol es menos.
Esto manda cortarse.
En dulces quiebros
El pardo de las aves,
Que nó el Orfeo.
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Edition Notes
Works by Soror Maria do Céu
- Enganos do Bosque, Desenganos do Rio. I e II parte (1)
- Adágio 3 - Nestas casas que aqui vedes
- Adágio 4 - É uma negra boçal
- Adágio 5 - Sou cambraia, porém sem fio
- Adágio 6 - Na fresca aurora sou dama prezada
- Adágio 7 - Filho sou de um monstro horrível
- Adágio 8 - Sou alva mas de má cor
- Adágio 9 - Era um moço comprido, negro e feio
- Adágio 10 - Eu sou uma ilha escura
- Adágio 11 - Uma mulher que apanhou
- Adágio 12 - Levo a primazia às mais
- Adágio 13 - Sou neste mundo a mulher
- Adágio 14 - Ontem fui flor
- Adágio 15 - Nasci entre gente nobre
- Adágio 16 - Terra dura os produziu
- Adágio 18 - Ando encoberta a fugir
- Adágio 19 - Vá fora a negra e mulato
- Adágio 20 - Sirvo ligeira e forte
- Adágio 21 - Ouça senhora condessa
- Adágio 22 - Sou ouro, mas confesso
- Adágio 23 - Estou na boca da dama
- Adágio 24 - Eu e um mancebo sim
- Adágio 25 - Nasci na casa de Deus
- Adágio 27 - Em uma monção ditosa
- Adágio 28 - Hei-la vem sem se sentir
- Adágio 29 - Todo o dia em um canto estou
- Adágio 30 - Por um caminho achado
- Adágio 33 - Com um homem muito forte me abracei
- Adágio 34 [primeiro] - Fui com estudo criado
- Adágio 34 [segundo] - Cara feia, pequeninho
- Adágio 35 - Se com discurso não bronco
- Amor es fé
- Aves Ilustradas (1)
Miscellaneous Works by Soror Maria do Céu
Posted
2 December 2021
Last Updated
22 June 2022
References
↑1 | Pássaro doméstico, ave que habita as casas. |
---|---|
↑2 | Indivíduo que pertence a uma ordem religiosa; monge. |
↑3 | Forçoso, necessário ou urgente. |
↑4 | Expressão de prazer; satisfação, alegria |
↑5 | na mitologia grega, deus do mar é uma ninfa do mar, uma das cinquenta nereidas filhas do antigo deus marinho. |
↑6 | deus romano do mar, inspirado no deus grego Poseidon. |
↑7 | Antiga designação da ilha do oceano Índico que constitui o atual Sri Lanka. |
↑8 | planta |
↑9 | um rio na Índia |
↑10 | foi uma devota santa católica holandesa. |
↑11 | significa cheirosa, aromática, balsâmica, olorosa, perfumada. |
↑12 | na mitologia grega, são divindades femininas secundárias que habitam os campos, as florestas e os mares etc. |
↑13 | refere-se a sacerdotes, bispos |
↑14 | alguém que professa uma heresia ou prática doutrinas contrárias aos dogmas concebidos pela igreja. |
↑15 | pássaro |
↑16 | um músico, poeta e profeta lendário na religião grega antiga. |
↑17 | Superiora do convento |