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Discurso I – O Pavão à Prelada((Superiora do convento))

by Soror Maria do Céu

Region: Lisboa, Portugal

Edited by Samuel Snell and Matthew Ginter

Capítulo

Chegou um dia, em que falaram os brutos como os homens, de alguns, em que houve homens, que falaram como brutos: houve uma hora, em que as aves mostraram mais liberdade nos bicos, do que nas azas; com estas cortam o ar, com estes ensinam agora aos racionais: ilustradas pela águia sua rainha, que bebe luzes na esfera do sol,((Alusão a Deus, ou Cristo)) se atreveram a dar documentos aos homens; começarão a missão pelos claustros; que aonde são mais obrigatórias as virtudes, estão mais importantes os avisos, e nestes não se deve olhar a quem os dá, mas só ao que são. Passeava uma prelada pela sua cerca, quando nesta se encontrou com um pavão; disse-lhe amigável: “pavão, queres dar-me os teus olhos para vigiar o meu mosteiro?” São poucos”, respondeu o pavão; e porque o discurso pede vagar, ouvi-o com descanso: “são poucos, senhora, os meus olhos para a vossa obrigação, porque uma prelada há mister((Qualquer variação da frase com o verbo “haver” combinado “mister” e a preposição “de” significa “precisar, necessitar, desejar” ​​​​https://www.recantodasletras.com.br/gramatica/3649022)) os olhos da pomba para olhar as aflitas, e as enfermas; que só quem vê com olhos de amor, vê com misericórdia; e está obrigada a examinar os males, quem é obrigada a dar-lhes o remédio, a descobrir as feridas, quem lhes deve os unguentos: para as sãs haveis de vigiar, se lhes falta o sustento; para as enfermas, se lhes faltam regalo; não haveis de descansar na enfermeira; que vós dais, e ela administra; vós mandais, e ela obedece; ela põe, e vós dispondes.

“Haveis mister os olhos da serpente para ver, e medir todas as coisas com prudência: não seja que sobeje da justiça para o rigor, nem da misericórdia para a omissão, nem de todo haveis de desembainhar a espada, nem de todo haveis de derramar do vaso o óleo; descobri uma mediania, que sem vos negar de mãe, vos deixe juíza. Haveis mister os olhos do leão, para que, ainda dormindo, os tenhais abertos; quem governa a nenhuma hora os há de ter fechados; haveis de vigiar de dia, e haveis de vigiar de noite: adverti, senhora, que o esposo((Alusão a Deus, ou Cristo)) ao meio dia convida a alma para as delícias, e à meia-noite chama as virgens para a conta; espreitai de dia a ver, se acertam com as pisadas, vigiai de noite a ver, se têm cevadas as alâmpadas: Media nocte clamor factus est. Si ignoras te, egredere, & abi post vestigia gregum, & pasce hædos tuos.((Tradução aproxima: Houve um grito no meio da noite. Se você não se conhece, saia e vá atrás dos rebanhos e alimente seus filhos))

 Haveis de mister os olhos do lince((Felino grande conhecido pela boa vista)) para verdes os átomos((Possível referência a “O Cisco e a Trave” onde Jesus aconselha não criticar os demais sem primeiro aperfeiçoar-nos nós mesmos. Ver Mateus 7:1-5.)) em vossas amigas, e os de toupeira,((Roedor subterrâneo conhecido pela má vista)) para que não enxergueis a aresta((Ver referência anterior)) em vossa contrária, e desta maneira fareis da contrária amiga, e da amiga religiosa. Não obstante a diferença destes olhos, vos encomendo tenhais a vista igual, não seja que a umas vejais por cristal, e a outras por encerado. Que dirão, se a mais chegada vedes com óculos de ver ao longe, e a mais afastada com óculos de ver ao perto? Isto é contra toda a razão; todas são vossas filhas, especulação igual, se não tereis com olhos direitos vista torta.

“Necessitais dos olhos da águia, para que estudeis nas luzes: a vossa obrigação é tão alta, que a não podeis aprender na terra: direção para esposas do sol não se estuda na sombra. Haveis de mister os olhos de todos para vos examinardes a vós: o amor próprio é muito cego, há de mister muita luz para se conhecer: exame de mim para mim é exame grosso; exame de outrem para mim é exame delicado. Perguntai às outras por vós, e eu vos asseguro, que vos enxerguem a mais pequena aresta: vós podeis em vós não ver a tranca, e as outras hão de enxergar-vos até o argueiro: sabei pelas mais o como se fala no vosso procedimento, que até o Filho de Deus perguntou a seus discípulos: ‘Que dizem lá do Filho do homem?’ Vós não sois melhor que o Filho de Deus. Que olhos vos direi, senhora, haveis de mister para vigiardes a pureza de vossas filhas? Certo que não acho outros, senão os de Deus: olhos humanos para ciúme divino têm pouca luz, ainda que tragam muito cuidado; verão o pó no cristal, a nódoa na pérola, o átomo no sol; mas não enxergam o quanto perde o sol, a pérola, e o cristal no pó, na nódoa, e no átomo: para zelar a pureza das esposas de Deus,((As freiras)) só olhos de Deus servem. Já vejo, senhora, que me perguntais o como tereis esses olhos. Como? Trazendo a Deus sempre diante de vossos, quando as vigiardes, e assim vendo por ele, vereis como ele: se as zelardes com os olhos de Deus, logo as guardareis dos olhos dos homens: as mais criaturas criou-as Deus para as criaturas, mas as religiosas((As freiras)) criou-as Deus para o Criador; as vegetativas,((Referência à criação da terra como é descrita em Gênesis 1:11-31)) e sensitivas criou-as para benefício do homem, as racionais, falando enquanto na terra, criou-as no mundo para os do mundo; mas as suas esposas criou-as só para si; pois as mais, que as vejam os outros; mas as suas esposas, que as veja só ele.

“Haveis de ter as vossas freiras, assim como o avarento tem os seu tesouro; o tesouro do avarento todos sabem está em sua casa, mas nenhum o trata, nenhum o vê, nenhum o comunica, porque é tão guardado, que só de si o fia: o vosso tesouro não são as flores dos vossos jardins, não são os pomos da vossa cerca, não é o grão do vosso celeiro, não é o adorno das vossas capelas, não é a prata da vossa sacristia; são as vossas religiosas, as vossas súbditas; a estas haveis de guardar, como o avarento guarda os seu tesouro: ele guarda ouro, de que se há de tomar conta a si; vós guardais pérolas, de que haveis de dar conta a Deus; sejam as vossas freiras tesouro escondido em campo manifesto; quereis que as venerem como deusas, fazei com que as conheçam só por fé; são de Deus, não as vejam os homens.

Quando o esposo bateu((Referência à parábola das dez virgens, onde as cinco virgens sábias estão preparados para a vinda do marido com aceite para suas lamparinas a óleo enquanto as cinco virgens tolas têm que sair a comprar aceite, perdendo a vinda do marido. Ver Mateus 25.)) às portas da esposa, não lhe disse só: ‘Abre’; disse-lhe: ‘Abre-me a mim’: ‘Aperi mihi’; pois não bastava, que este amante para entrar, dissesse à sua amada, que lhe abrisse; ‘Aperi’? Não, que o ciúme fia delgado, que o entendimento, e o que basta para a razão, não basta para o receio; disse-lhe: ‘Abre-me a mim’, para que entendesse, que havia de ser a ele, e não a outrem; ‘só a mim hás de abrir, só a mim hás de ver, só comigo hás de tratar, a mim, e não a outrem’: ‘Aperi mihi’. Não vos fieis, senhora, em as verdes puras, em as verdes justas, em as verdes perfeitas, que a cautela é dos santos, dos perfeitos, e dos justos. Santa era a Esposa dos Cantares,((Refere-se à noiva do Cantar dos Cantares, vista como uma representação da Igreja)) e pedia que a cobrissem; estava tão perfeita, que morria de amores: ‘Amore langueo’; e na mesma enfermidade dizia que a cobrissem, que a cercassem; não pedia flores só para desafogar o seu incêndio nas penas, nos trabalhos, de que eram jeroglíficos, pedia-as como penas para desafogar nelas o seu amor, pedia-as como véu para acautelar nelas o seu perigo. ‘Cobri-me de flores, que morro de amor’, e quanto mais amante, mais acautelada: ‘Fulcite me floribus’.

“Contar-vos-ei um conto, pedindo-vos primeiro o não tomeis como fábula,((Curta narrativa, em prosa ou verso, com personagens animais que agem como seres humanos, e que ilustra um preceito moral [de Oxford Languages])) senão como exemplo. Em certa idade tratou o sol de casar-se; não pode ser com a lua, porque é sua irmã; tão pouco com as estrelas, porque são suas vassalas: ajustou-se o casamento com uma esclarecida princesa, que tinha a sua habitação lá nas primeiras terras do Oriente: se fosse neste tempo, que grande haveria que deixasse de cuidar, merecia só sua filha o ser esposa do sol! Ouvindo os homens celebrar núpcias a este planeta, e julgando, que tal poderia ser a esposa de tal esposo, partiram de diversas nações a buscá-la na sua corte para vê-la, ou para melhor dizer para admirá-la, chegaram às portas do seu palácio, onde encontraram um venerável sujeito, que fazia ofício de porteiro, vestido de uma tela iluminada nas luzes do sol, que já por ali andavam os seus desperdícios; tende-me, senhora, segredo neste vestido, que se o sabem as vaidosas desta era, hão de furtar os raios ao sol para tecerem os seus tissus.((Possivelmente a palavra francesa para “tecidos”)) Assim como os viu a personagem, disse: ‘que vem fazer aqui tanta gente’? Responderam todos a uma voz: ‘vimos a ver a esposa do rei dos planetas’. Aqui o venerável abaixando os olhos, severizando o semblante, formando senho, disse: ‘e quem se há de atrever a pôr os olhos na esposa do sol’? Esta palavra proferida, voltam todos as costas, e aqueles passos, que tinha dado a curiosidade, desandou o respeito.

“Este símile, senhora, fala convosco, este exemplo para vós se fez; quando ou a política, ou a curiosidade, ou a galanteria vos pedir vistas de vossas freiras, respondei: ‘e quem se há de atrever a pôr os olhos nas esposas de Deus’? E eu vos asseguro, que logo vos voltem as costas: o nome de esposas de Deus até os bárbaros respeitam, como o não hão de respeitar os Católicos? Ouvi a este propósito um caso verdadeiro. Nas índias de Castela conquistando os espanhóis o Reino de Chile, sempre bem resistido, e mal domado, já quando em seus países haviam levantado suas colônias, o bravo Chileno, bárbaro na nação, político no valor, ao rigor de suas setas entrou a saco((Saqueou)) uma daquelas cidades, sem que as armas espanholas a pudessem defender da fúria Americana; repartiram-se os prisioneiros, entre os quais coube por forte a um cacique((Chefe indígena)) uma donzela na profissão religiosa, e na formosura extremada; olhou-a o Índio, e ficou cativo de sua escrava: que o amor assim como abranda feras, sujeita bárbaros; e vendo que com as lágrimas acrescentava as pérolas daquele sul lhe disse amante: ‘se hoje choras o teu cativeiro, amanhã o não quererás trocar pela tua liberdade, pois ficas sendo minha esposa, mulher de um cacique; nem na tua terra podias ter melhor sorte, nem nesta melhor fortuna’. Respondeu a donzela, mudando flores em suas faces o duplicado de seu susto: ‘eu estou desposada com o meu Deus, com que não posso ser tua conforte, e primeiro serei vítima da tua pira, que companhia do teu tálamo((Leito de casamento)); porque se minha sorte me tirou a liberdade, não pode tirar-me a fé’. Suspendeu-se o índio a esta resposta, e depois de um breve intervalo disse animoso: ‘não permita o céu, que a que é esposa de um deus, o fique a ser de um homem; nem eu sou tão bárbaro, que me atreva a fazer este furto à divindade; em meu poder ficarás, não como escrava, mas como rainha, não como cativa, mas como senhora, que este é o respeito, que se deve à dignidade de uma esposa de Deus’. Assim o disse, e assim o executou, tendo-a em casa separada, servida de índias, assistida de regalos, e livre de atrevimentos. A religiosa, que ainda que com este trato se via em Babilônia((Cidade que na Bíblia representa o mundo e o mundano)) com saudades de Sião, ((Cidade cujo nome hebreu significa fortaleza, uma cidade santa)) pediu ao cacique, fiada em tantos favores, a quisesse trasladar à sua terra; condescendeu com a petição; e por não fiar da contradição dos seus este segredo, atravessou só um rio, que era divisão entre a sua habitação, e aquela colônia; e sem temer os perigos da vingança, falou aos espanhóis, dando-lhe o dia, hora, e lugar, em que lhes havia de trazer a donzela restituída, para que estivessem prontos em esperá-la. Voltou livre, que se um gentio((Uma pessoa que não pertence à igreja de Deus, neste caso, a igreja católica)) foi fiel, como seria bárbaro um católico! Chegou ao porto, e sítio praticado; entregou a donzela, deixando assim a ela como aos demais admirada sua resolução, ou para melhor dizer sua virtude. Já vimos como este infiel se houve com Deus: agora vejamos como Deus lhe paga. Ficou o índio servindo a donzela; não diz a história onde seria em casa de parentes, se é que o mosteiro ficou destruído. Aqui tocou Deus ao gentio, para que deixando a gentilidade, professasse a fé de Cristo: já está pago na troca, pois lhe deu a fé pela fineza, tomou o batismo, e ao depois sua mulher, e filhos, a quem trasladou do país bárbaro para a colônia fiel.

“Estes são, senhora, os exemplos, que deveis estimar, e aquela é a vigilância, que deveis ter, para a qual vos disse serem poucos os meus olhos, porque necessitais de tantos mais; estimai os avisos de uma ave, a quem a águia comunicou a luz, que bebeu no sol”. Calou o pavão, e a prelada ficou a ponderar discursiva quanto lhe tinha escutado atenta, quando uma ave música deu fim a este lance sonora; entendeu-se-lhe a letra, porque era dia em que falavam as aves.

 

De una azucena celoso

no quiere el sol esta vez,

que pase el aire por ella,

si sopló por el clavel.

 

Si el alba perlas le da,

no las admite también,

que hasta bulto de una perla

es sombra contra una fe.

 

Porque el ruiseñor((Pássaro mimo)) no mire

a su belleza fiel,

antes se deja morir,

que se permita nacer.

 

Gime el viento,

canta el ave,

y el sol con la flor cruel

ni deja que aliente mal,

 

Ni deja que escuche bien.

Si celas su fe,

aprende del sol,

porque luz te de.

Diplomatic Transcription

DISCURSO I.

O PAVAM A’ PRELADA.

 

CHegou hum dia, em que fal-

láraõ os brutos como os ho-

mens , de alguns , em que

houve homens, que falláraõ

como brutos : houve huma

hora , em que as aves mos-

tráraõ mais liberdade nos bicos , do que

nas azas ; com estas cortaõ o ar, com estes

ensinaõ agora aos racionaes : illustradas

pela aguia sua Rainha , que bebe luzes na

esfera do Sol, se atrevéraõ a dar docu-

mentos aos homens; começáraõ a missaõ

pelos claustros ; que aonde saõ mais obri-

gatorias as virtudes, estaõ mais importan-

tes os avisos , e nestes naõ se deve olhar a

quem os dá, mas só ao que saõ. Passeava

huma Prelada pela sua cerca, quando nesta

[1]

se encontrou com hum pavaõ; disselhe

amigavel : Pavaõ, queres darme os teus

olhos para vigiar o meu mosteyro ? Saõ

poucos, resondeo o pavaõ ; e porque o

discurso pede vagar,ouvi-o com descanço :

Saõ poucos, senhora, os meus olhos para

a vossa obrigaçaõ , porque huma Prelada

ha mister os olhos da pomba para olhar as

afflictas,e as enfermas;que só quem vé com

olhos de amor, vé com misericordia; e está

obrigada a examinar os males, quem he

obrigada a darlhes o remedio , a descobrir

as feridas , quem lhes deve os unguentos :

para as sans haveis de vigiar,se lhes falta

o sustento ; para as enfermas, se lhes falta

o regalo;naõ haveis de descançar na enfer-

meyra ; que vós dais, e ella administra ; vós

mandais, e ella obedece; ella poem, e vós

dispondes.

Haveis mister os olhos da serpente para

ver, e medir todas as cousas com pruden-

cia : naõ seja que sobeje da justiça para o

rigor, nem da misericordia para a omis-

saõ , nem de todo haveis de desembainhar

a espada , nem de todo haveis de derramar

do vaso o oleo ; descobri huma medianîa,

que sem vos negar de mãy,vos deyxe juiza.

[2]

Haveis mister os olhos do leaõ , para que ,

ainda dormindo, os tenhais abertos; quem

governa a nenhuma hora os ha de ter fe-

chados; haveis de vigiar de dia, e haveis de

vigiar de noite: adverti, senhora , que o es-

poso ao meyo dia convida a alma para as

delicias , e á meya noite chama as virgens

para a conta; espreitay de dia a ver, se acer-

taõ com as pisadas, vigiay de noite a ver, se

tem cevadas as alampadas: Media nocte cla-

mor factus est. Si ignoras te ,egredere ,&

abi post vestigia gregum,& pasce hædos tu-

  1. Haveis de mister os olhos do lince para

verdes os atomos em vossas amigas, e os de

topeira, para que naõ enxergueis a aresta

em vossa contraria, e desta maneira fareis

da contraria amiga , e da amiga religiosa.

Naõ obstante a differença destes olhos, vos

encommendo tenhais a vista igual, naõ seja

que a huãs vejais por crystal , e a outras

por enserado. Que diraõ,se á mais chegada

vedes com oculos de ver ao longe, e à

mais affastada com oculos de ver ao per-

to ? Isto he contra toda a razaõ ; todas saõ

vossas filhas, especulaçaõ igual , se naõ te-

reis com olhos direitos vista torta.

Necessitais dos olhos da aguia , para que

[3]

estudeis nas luzes: a vossa obrigaçaõ he taõ

alta , que a naõ podeis aprender na terra :

direçaõ para esposas do Sol naõ se estuda

na sõbra.Haveis de mister os olhos de todos

para vos examinardes a vós:o amor proprio

he muyto cego, ha de mister muyta luz pa-

ra se conhecer: exame de mim para mim he

exame grosso; exame de outrem para mim

he exame delicado. Perguntay ás outras

por vós , e eu vos seguro, que vos enxer-

guem a mais pequena aresta : vós podeis em

vós naõ ver a tranca, e as outras haõ de en-

xergarvos até o argueiro : sabey pelas mais

o como se fala no vosso procedimento, que

até o Filho de Deos perguntou a seus dis-

cipulos: Que dizem lá do Filho do homem?

Vós naõ sois melhor, que o Filho de Deos.

Que olhos vós direy,senhora,haveis de mis-

ter para vigiardes a pureza de vossas filhas ?

Certo que naõ acho outros, senaõ os de

Deos: olhos humanos para ciume divino

tem pouca luz , ainda que tragaõ muyto

cuydado ; veraõ o pó no crystal , a nodoa

na perola , o atomo no Sol ; mas naõ enxer-

gaõ o quanto perde o Sol , a perola, e o

crystal no pó , na nodoa , e no atomo : pa-

ra zelar a pureza das esposas de Deos, só

[4]

olhos de Deos servem. Já vejo , senhora,

que me perguntais o como tereis esses

olhos. Como? Trazendo a Deos sempre

diante de vossos,quando as vigiardes, e as-

sim vendo por elle , vereis como elle :se as

zelardes com os olhos de Deos, logo as

guardareis dos olhos dos homens: as mais

creaturas creou-as Deos para as creaturas,

mas as Religiosas creou-as Deos para o

Creador; as vegetativas,e sensitivas creou-

as para beneficio do homem , as racionaes ,

falando em quanto na terra , creou-as no

mundo para os do mundo ; mas as suas es-

posas creou-as só para si ; pois as mais, que

as vejaõ os outros ; mas as suas esposas,que

as veja só elle.

Haveis de ter as vossas Freiras,assim como

o avarento tem os seu thesouro ; o thesouro

do avarento todos sabem está em sua casa ,

mas nenhum o trata, nenhum o vé, nenhum

o communica, porque he taõ guardado ,

que só de si o fia : o vosso thesouro naõ saõ

as flores dos vossos jardins , naõ saõ os po-

mos da vossa cerca , naõ he o graõ do vosso

celleiro, naõ he o adorno das vossas capel-

las ,naõ he a prata da vossa sacristia ;saõ as

vossas Religiosas , as vossas subditas ; a es-

[5]

tas haveis de guardar , como o avarento

guarda os seu thesouro: elle guarda ouro, de

que se ha de tomar conta a si ;vós guardais

perolas, de que haveis de dar conta a Deos;

sejaõ as vossas Freiras thesouro escondido

em campo manifesto ; quereis que as vene-

rem como deosas, fazey com que as conhe-

çaõ só por fé; saõ de Deos, naõ as vejaõ os

homens.

Quando o esposo bateo ás portas da es-

posa,naõ lhe disse só:Abre;disselhe:Abreme

a mim : Aperi mihi ; pois naõ bastava, que

este amante para entrar, dissesse á sua ama-

da, que lhe abrisse;Aperi? Naõ,que o ciume

fia delgado , que o entendimento , e o que

basta para a razaõ, naõ basta para o receyo ;

disselhe: Abreme a mim,para que entendes-

se, que havia de ser a elle , e naõ a outrem ;

só a mim has de abrir,só a mim has de ver ,

só comigo has de tratar, a mim ,e naõ a ou-

trem : Aperi mihi. Naõ vos fieis , senhora,

em as verdes puras,em as verdes justas,em as

verdes perfeitas , que a cautela he dos san-

tos , dos perfeytos, e dos justos. Santa era a

Esposa dos Cantares ,e pedia que a cobris-

sem ; estava taõ perfeyta , que morria de

amores: Amore langueo ; e na mesma enfer-

[6]

midade dizia que a cobrissem, que a cer-

cassem ; naõ pedia flores só para desaffogar

o seu incendio nas penas ,nos trabalhos, d

que eraõ jeroglificos , pedia-as como penas

para desaffogar nellas o seu amor ,pedia-as

como veo para acautelar nellas o seu peri-

  1. Cobri-me de flores,que morro de amor,

e quanto mais amante, mais acautelada :

Fulcite me floribus.

Contarvoshey hum conto , pedindovos

primeyro o naõ tomeis como fabula, senaõ

como exemplo. Em certa idade tratou o

Sol de casarse; naõ pode ser com a Lua,por-

que he sua irmã ; taõ pouco com as estrel-

las , porque saõ suas vassallas : ajustouse o

casamento com huma esclarecida Prince-

za, que tinha a sua habitaçaõ lá nas primey-

ras terras do Oriente : se fosse neste tempo,

que Grande haveria que deyxasse de cuy-

dar,merecia só sua filha o ser esposa do Sol!

Ouvindo os homens celebrar nupcias a es-

te Planeta , e julgando , que tal poderia ser

a esposa de tal esposo , partiraõ de diversas

naçoens a buscalla na sua corte para vella ,

ou para melhor dizer para admiralla , che-

garaõ ás portas do seu palacio ,aonde en-

contráraõ hum veneravel sugeyto , que fa-

[7]

zia officio de porteyro, vestido de huma

tella illuminada nas luzes do Sol , que já

por alli andavaõ os seus desperdicios ; ten-

deme, senhora, segredo neste vestido , que

se o sabem as vaidosas desta era , haõ de

furtar os rayos ao Sol para tecerem os seus

tissus. Assim como os vio a personagem ,

disse: Que vem fazer aqui tanta gente ?

Respondéraõ todos a huma voz: Vimos a

ver a esposa do Rey dos Planetas. Aqui o

veneravel abayxando os olhos , severizan-

do o semblante , formando senho, disse : E

quem se ha de atrever a pór os olhos na es-

posa do Sol? Esta palavra proferida,voltaõ

todos as costas, e aquelles passos, que tinha

dado a curiosidade,desandou o respeyto.

Este simile , senhora , fala comvosco ,

este exemplo para vós se fez; quando ou a

politica, ou a curiosidade , ou a galantaria

vos pedir vistas de vossas Freiras, respon-

dey: E quem se ha de atrever a pór os olhos

nas esposas de Deos? E eu vos seguro, que

logo vos voltem as costas : o nome de es-

posas de Deos até os barbaros respeytaõ ,

como o naõ haõ de respeytar os Catholi-

cos? Ouvi a este proposito hum caso ver-

dadeiro. Nas Indias de Castella conquis-

[8]

tando os Hespanhoes o Reyno de Chile ,

sempre bem resistido , e mal domado , já

quando em seus paizes haviaõ levantado

suas colonias, o bravo Chileno, barbaro na

naçaõ , politico no valor , ao rigor de suas

settas entrou a faco huma daquellas Cida-

des,sem que as armas Hespanholas a podes-

sem defender da furia Americana; reparti-

raõ-se os prisioneiros , entre os quaes cou-

be por forte a hum Cazique huma donzel-

la na profissaõ Religiosa, e na formosura

estremada ; olhou-a o Indio, e ficou cativo

de sua escrava : que o amor assim como

abranda feras, sugeita barbaros; e vendo

que com as lagrimas accrescentava as pe-

rolas daquelle Sul, lhe disse amante: Se ho-

je choras o teu cativeyro, á manhã o naõ

quererás trocar pela tua liberdade , pois fi-

cas sendo minha esposa, mulher de hum

Cazique ; nem na tua terra podias ter me-

lhor sorte, nem nesta melhor fortuna.Res-

pondeo a donzella,mudando flores em suas

faces o duplicado de seu susto :Eu estou

desposada com o meu Deos, com que naõ

posso ser tua conforte, e primeyro serey vi-

ctima da tua pira,que companhia do teu ta-

lamo ; porque se minha sorte me tirou a li-

[9]

berdade,naõ pòde tirarme a fé.Suspendeo-

se o Indio a esta resposta, e depois de hum

breve intrevallo disse animoso : Naõ per-

mitta o Ceo , que a que he esposa de hum

Deos, o fique a ser de hum homem; nem eu

sou taõ barbaro ,que me atreva a fazer este

furto á Divinidade ; em meu poder ficarás,

naõ como escrava,mas como Rainha , naõ

como cativa , mas como senhora , que este

he o respeyto , que se deve á dignidade de

huma esposa de Deos. Assim os disse , e assim

o executou,tendo-a em casa separada , ser-

vida de Indias ,assistida de regalos , e livre

de atrevimentos.A Religiosa,que ainda que

com este trato se via em Babylonia com

saudades de Siaõ, pedio ao Cazique, fiada

em tantos favores, a quizesse trasladar á sua

terra ; condescendeo com a petiçaõ ; e por

naõ fiar da contradiçaõ dos seus este segre-

do , atrevessou só hum rio , que era divisaõ

entre a sua habitaçaõ, e aquella colonia ;

e sem temer os perigos da vingança, falou

aos Hespanhoes,dandolhe o dia, hora, e lu-

gar,em que lhes havia de trazer a donzella

restituida , para que estivessem promptos

em esperalla.Voltou livre, que se hum gen-

tio foy fiel,como seria barbaro hum Catho-

[10]

lico! Chegou ao porto, e sitio praticado;en-

tregou a donzella , deyxando assim a ella

como aos demais admirada sua resoluçaõ ,

ou para melhor dizer sua virtude. Já vi-

mos como este infiel se houve com Deos :

agora vejamos como Deos lhe paga. Ficou

o Indio servindo a donzella ; naõ diz a his-

toria aonde ;seria em casa de parentes , se

he que o mosteiro ficou destruido. Aqui

tocou Deos ao gentio , para que deyxando

a gentilidade , professasse a fé de Christo :

já está pago na troca,pois lhe deo a fé pela

fineza , tomou o bautismo , e ao depois sua

mulher, e filhos,a quem trasladou do paiz

barbaro para a colonia fiel.

Estes saõ, senhora, os exemplos, que de-

veis estimar , e aquella he a vigilancia,que

deveis ter, para a qual vos disse serem pou-

cos os meus olhos , porque necessitais de

tantos mais ; estimay os avizos de huma

ave ,a quem a aguia communicou a luz ,

que bebeo no Sol. Calou o pavaõ, e a Prela-

da ficou a ponderar discursiva quanto lhe

tinha escutado attenta, quando huma ave

musica deo fim a este lance sonora ; enten-

deose-lhe a letra,porque era dia,em que fa-

lavaõ as aves.

[11]

De una açucena zeloso

No quiere el sol esta vez ,

Que passe el aire por ella ,

Si sopló por el clavel.

Si el alva perlas le dá ,

Nó las admitte tambien ,

Que hasta vulto de una perla

Es sombra contra una fé.

Porque el ruiseñor no mire

A su belleza fiel ,

Antes se dexa morir ,

Que se permitta nacer.

Gime el viento , canta el ave,

Y el Sol con la flor cruel

Ni dexa que aliente mal ,

Ni dexa que escuche bien.

Si zelas su fé ,

Aprende del Sol ,

Porque luz te dè.

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Posted

17 December 2021

Last Updated

14 June 2022